CONTO UM

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Eram por volta das quatro da tarde quando eu cheguei ao cemitério. Eu caminhava entre os túmulos com calma e logo encontrei o local de descanso de Adão Olivares, o homem que abandonou minha mãe pra se casar com uma ricaça.
—Eu não sei o que devo dizer.— Confessei bebendo um pouco da cerveja que trazia comigo. —Acho que você ia preferir seus outros filhos aqui no meu lugar.—
Olhei a lápide fria e acabei lembrando de todas as vezes que vi ele com a família o que me fez perder totalmente a coragem e querer sair de lá correndo.
—Você não devia tá aqui, Karla!—Levantei virando as costas pronta para ir embora, meu estomago estava revirando e eu sentia uma vontade enorme de vomitar, mas eu me segurei ao lembrar de todas as vezes que minha mãe chorou e me culpou por ele sair da vida dela e senti uma raiva incontrolável.
—Mas eles não estão aqui, não é?— Voltei atrás e olhei o túmulo. —Eles nem sequer foram no seu enterro. Então você vai ter que se conformar com a sua bastarda.—Voltei a sentar na lápide, eu estava pronta para falar tudo que queria.
—Sabe, eu só fiquei sabendo de você quando comecei a trabalhar com você no jornal da sua esposa, foi quando mostrei uma foto sua que minha mãe reconheceu você e me falou tudo.—
Levei a garrafa de cerveja aos lábios e senti um sabor amargo descer por minha garganta, não sei explicar se era da cerveja ou pelas palavras proferidas.
—Mesmo assim eu nunca fui atrás de você, eu apenas vivi minha vida como sempre fiz. Mas você começou a se aproximar de mim, me apresentou sua esposa Úrsula, seus filhos Hermes e Dalilah...— Bebi mais um pouco. —Eu até pensei que fosse um tipo de instinto paterno, mas eu tive que deixar essa ideia de lado porque era tão ridícula. E quando você me falou que sairia de férias com sua família eu só tive mais certeza do quando ridículo era acreditar no instinto paterno de um homem que já havia me abandonado antes de nascer.—
Eu olhava para o chão tentando não olhar para seu túmulo, estava com tanta raiva e mesmo assim tinha um sorriso no rosto quase como se tudo fosse uma piada.
—Quando eu contei pra minha mãe, ela foi atrás da sua família para contar tudo. Ela achava que assim você iria voltar pra ela e assim seriamos uma família feliz. Mas não foi o que aconteceu.— Bebi o último gole de cerveja. —Você nos rejeitou, nos expulsou da sua casa dizendo que jamais ficaria com a gente. Mas não adiantou, sua esposa pediu o divórcio e seus filhos não falaram mais com você, e algum tempo depois você sofreu um acidente ao dirigir bêbado e acabou morrendo.—
Eu fiquei em pé olhando para a lápide tentando não demonstrar minhas emoções, mas uma lágrimas se firmava em meus olhos.
—Eu não queria nada de você! Eu nunca pensei em te chamar de pai e muito menos queria você perto de mim, mas ver você me negar e me expulsar da sua casa daquele jeito!— Cerrei os dentes com força. —Aquilo doeu. 26 anos, eu vivi 26 anos sem você e eu vivi eles muito bem apesar da minha mãe me culpar... mas bastou um dia pra você transformar tudo em tristeza... e pra que? Pra manter um casamento com uma ricaça dona do maior jornal do país? E olha onde você tá agora, embaixo dos meus pés, sozinho, sem dinheiro e sem o amor de ninguém, então me diz...— Me ajoelhei perto do túmulo. —Valeu a pena abandonar a mulher que te amava e tinha sua filha na barriga?—
Sussurrei cada palavra perto da lápide como se estivesse falando no ouvido dele.
—Sabe, quando eu cheguei aqui estava com ódio de você, mas, agora vendo que nem mesmo a mulher por quem nos abandonou veio te ver eu só consigo sentir pena. Você não vale a minha raiva e muito menos o tempo que gastei aqui.— limpei meus joelhos e virei de costas. —Adeus!—
Quando cheguei em casa encontrei minha mãe tomando um chá no sofá, tentei passar por ela sem chamar sua atenção, mas não funcionou.
—Onde você estava?— Ela perguntou sem me olhar. —Você foi ver ele?—
—Sim. Eu precisava dizer algumas coisas.— Falei seca.
—Hum!— Ela fechou os olhos. —Ele teria voltado. Se você não tivesse falado com ele daquele jeito, ele teria voltado para mim.—
—Você gosta mesmo de se iludir, hein!?— Fiquei com raiva por causa de sua acusação. —Ele nunca voltaria para você! Ele só se importava com dinheiro, se ele quisesse ficar contigo, nada teria impedido ele de fazer isso.— Falei perto do ouvido dela. —pare de viver no seu mundo de fantasia.—
—Você é tão insensível.— Ela finalmente me olhou nos olhos.
—Eu apenas estou cuidando de mim mesma e você devia fazer o mesmo.— Falei indo em direção ao meu quarto. —Eu vou embora para um apartamento no centro, perto do trabalho. Você pode ficar aqui o quanto quiser, a casa é sua agora.—
—Acha que ainda vai ter um trabalho depois disso?— Suas palavras me fizeram virar para olha-la novamente.
—O que quer dizer?— Perguntei curiosa.
—Úrsula sabe que você é a bastarda do Adão, e ela se separou dele por causa da sua existência e logo depois ele faleceu. Tudo porque você existe. Acha mesmo que ela vai deixar você trabalhando pra ela depois de tudo?— Ela sorriu debochada e voltou a beber o chá. —E depois eu é quem vivo em um mundo de fantasias.— Deu uma risadinha sarcástica.
—Sabe, você é uma mulher tão fraca e vazia que me dá pena! Olha pra você, uma mulher adulta que foi incapaz de reconstruir sua vida depois de ser abandonada!— Alterei a voz. —Você é tão fraca que precisa me culpar por tudo pra se sentir melhor, mas adivinha: eu não sou culpada de nada!—  Bate a mão sobre o peito. —Ele te abandonou porque era covarde e aproveitador! Eu não tive nada a ver com isso!— Cuspi as palavras com raiva.
—Você tem tudo a ver!—afirmou com raiva. —A gravides acabou com minha carreira de bailarina e afastou o Adão de mim. Você foi a responsável por tudo que aconteceu!— Suas palavras me machucaram. Eu tive vontade de chorar, mas segurei o choro como sempre fazia; eu não daria esse prazer a ela.
—Ele te abandonou porque viu que você não poderia mais dar conforto a ele, mas foi sua escolha me dar a luz.— Exclamei com raiva. —Você teve a escolha de fazer um aborto, você escolheu me trazer a esse mundo e você escolheu me criar.—
—O que você queria que eu fizesse?— Alma alterou a voz também. —Queria que eu tivesse te abandonado naquele hospital? Ou até te abortado?—
—Bastava não ser negligente como foi!— Gritei com toda a força que tinha. —Que culpa eu tenho das escolhas que vocês tomaram? Por acaso eu não fiquei do seu lado todo esse tempo suportando seu desprezo e cuidando de você?— Levantei a manga da minha camisa mostrando as marcas que tinha em meu corpo. —Isso foi o que aconteceu por causa do seu desprezo.—
—Por que você fez isso?—  Os olhos de Alma se arregalaram ao ver as marcas em meus braços.
—Porque doía!  Porque toda vez que você me rejeitava eu desejava morrer...— senti uma lágrima descer por meu rosto. —Tudo que eu queria era que você me amasse! Eu não queria uma bailarina, eu só queria uma mãe!— As lágrimas descia por meu rosto sem que eu conseguisse segurar. —Eu queria uma família, mas você nem ao menos me chamava de filha!— meu rosto estava agora banhado em lágrimas. —Eu desisti de mendigar o seu amor. Então adeus Alma!—
Eu não esperei sua resposta apenas fui até meu quarto pegando as malas que já estavam feitas e sai daquela casa. Estava na hora de me libertar de tudo aquilo.
No dia seguinte eu estava trabalhando normalmente, mas as palavras de Alma não saiam da minha cabeça. Talvez ela estivesse certa, talvez eu seja a culpada e nesse caso a dona Úrsula vai me colocar no olho da rua.
“Porra eu trabalhei tanto pra conseguir esse emprego.” Falei para mim mesma sem me dar conta de que alguém me chamava.
—Karla— Uma colega falou. —Dona Úrsula está te chamando na sala dela.— Ao ouvir isso meu coração disparou.
Eu levantei e comecei a andar em direção a sala dela enquanto as palavras da minha mãe se repetiam na minha mente, eu inconscientemente já estava aceitando que havia perdido o emprego do meu sonho.
—A senhora me chamou?— Falei ao entrar em sua fala.
—Sim. Por favor sente.— Ela apontou para a cadeira. —Karla, você já deve ter uma ideia do porque eu te chamei aqui.—
Engoli em seco a olhando assustada e respondi quase tremendo a voz.
—A senhora vai me demitir?— Falei apertando a calça que estava usando. —Porque eu fui responsável pelo seu divórcio.—
—O que? Não, nada disso.– Ela se apressou em falar.
—Então porque me chamou?— Perguntei um pouco mais calma
—Eu queria pedir desculpa pela maneira como você e sua mãe foram tratadas quando estiverem em nossa casa. Vocês não deviam ter sido tratadas daquela maneira.—Seu olhar era  triste. —Você não teve culpa do meu divórcio, o único culpado foi Adão que negou você, que abandonou sua mãe antes de você nascer. Eu achei que tinha me casado com um homem honesto e bondoso, mas percebi que ele era apenas um covarde irresponsável que mentiu para mim desde que nos conhecemos.—
Suas palavras eram sinceras, eu podia  sentir sua dor pela decepção que ele causou nela, eu queria conforta-la, mas não sabia como.
—Eu não poderia ficar ao lado de alguém sabendo que ele foi covarde, e muito menos depois de como ele tratou você, o homem por quem me apaixonei era uma ilusão.— Ela suspirou pesadamente.
—Eu sinto muito.— Falei sinceramente.
—Você sente, não é? Você tem um bom coração apesar da cara seria— Eu fiquei surpresa com suas palavras. —Acho que a única coisa boa que ele fez na vida foram você e seus irmãos.—
Suas palavras tocaram o fundo do meu coração, eu nunca ouvi palavras tão bonitas sendo dirigidas a mim. Não consegui segurar as lágrimas e comecei a chorar ali mesmo sentada naquela cadeira.
—Me desculpe.— Pedi envergonhada.
—Tudo bem, acho que você nunca ouviu algo assim, não é?— Ela perguntou me abraçando e eu acenei positivamente com a cabeça, eu não conseguia falar.
—Tudo bem, você não tem culpa de nada, você pode viver sua vida tranquila e sem medo.— sussurrou no meu ouvido e eu senti como se o vazio dentro de mim estivesse sendo preenchido. Eu me agarrei a seu corpo e chorei até não poder mais.
—Mãe?— Ouvi a voz de Hermes atrás de mim. —O que ela está fazendo aqui?— Perguntou com a voz fria e logo depois vi Dalilah surgir atrás dele.
—O que está acontecendo aqui?— Dalilah me olhou confusa, ela parecia mais calma que seu irmão, porem estava igualmente surpresa.
—Eu chamei a Karla para pedir desculpa pela maneira como ela e a mãe foram tratadas em nossa casa e acabamos nos emocionando um pouco.—Úrsula explicou me largando e ficando de frente para os filhos.
O clima era tenso na sala, estava me sentindo uma intrusa no meio deles, eu queria muito sair daquele sala, mas sem que eu esperasse Úrsula voltou a falar.
—Escutem: eu sei que vocês ainda não superaram os últimos acontecimentos, mas a Karla não tem culpa do que aconteceu, ela sofreu tanto quanto nós com todas essas mentiras. Então eu quero pedir para que não guardem rancor dela, pois ela é tão vitima quanto vocês.— Úrsula tocou meu ombro me deixando sem jeito.
Eu olhava para Dalilah e Hermes esperando o que eles iriam dizer, e Dalilah foi a primeira a falar.
—Karla, eu não sinto raiva de você, mas tudo que aconteceu mexeu muito comigo... as mentiras  do meu pai, a forma como ele tratou vocês quando foi descoberto, a morte dele...— Suspirou como quem tinha acabado de correr meia maratona. —E você sabia de tudo e escondeu de nós; você convivia com a gente e nunca falou que era nossa irmã. – Dalilah tinha um olhar de decepção e eu não podia culpa-la.
—Eu sinto muito! Eu não queria mentir para vocês, mas eu não podia simplesmente dizer que sou irmã de vocês do nada.— Tentei me explicar. —Muitas vezes eu quis contar tudo, mas eu sabia as consequências disso e eu não queria esse peso pra mim.— Baixei a cabeça.
—Eu entendo Karla, mas eu vou precisar de um tempo para entender tudo— Dalilah se aproximou de mim colocando uma mão sobre meus ombros. —Apesar de todos os acontecimentos... eu estou muito feliz de ter você como irmã mais velha.— Sorriu para mim.
Eu não sabia como agir diante daquelas palavras, eu apenas sorri enquanto ela saia da sala. O alívio tomou conta do meu coração, mas logo se foi quando voltei minhas atenções para Hermes
—E quanto a você?— Perguntei olhando para Hermes.
—Como minha irmã disse: não estamos com raiva, mas você mentiu para nós... eu só preciso colocar minha cabeça no lugar, mas não se preocupe eu não te culpo por nada.— Hermes falou indo em direção a porta. –Mais uma coisa: Eu não pretendo te chamar de irmã.— Me olhou com frieza antes de sair.
—Foi melhor do que eu pensei!— Confessei.
—Dê um tempo a eles!— Úrsula pediu. —Meus filhos são ótimas pessoas, mas estão magoadas.— Úrsula tocou meu ombro sorrindo. —Agora vá para casa, você não está em condição de trabalhar. Tire um tempo para você e só depois se preocupe com o trabalho. Eu também vou fazer isso.—
Respirei fundo tentando processar tudo que aconteceu. Meus irmãos não me odeiam, estão decepcionados, mas não me odeiam; a ex. mulher do Adão me tratou muito bem, o que foi o contrario do que Alma me fez imaginar. Não sabia o que pensar a respeito, mas estava feliz.
Depois de um tempo eu voltei ao trabalho, estava muito feliz morando sozinha e pela primeira vez tudo estava dando certo, mas algum tempo depois Alma veio me visitar.  Era um sábado a noite quando ouvi a companhia entrar, eu fui até ate a porta a abrindo e dando de cara com Alma que soltava no ar a fumaça de um cigarro.
—Posso entrar?— Ela perguntou desviando o olhar, parecia envergonhada.
—Claro. Mas apague o cigarro antes, por favor!— Dei passagem e ela entrou sentando no sofá. —O que você quer?—
—Eu quero esclarecer as coisas.— Ela não me olhou. —Depois que você saiu eu pensei sobre o que disse e cheguei a conclusão de que eu sou péssima pessoa e uma mãe pior.— Reconheceu olhando para o chão. —Eu queria que me reconciliar com você, pedir perdão por tudo que fiz você passar.— Ela olhou para meus braços.
—Que bom que você  está percebendo a pessoa horrível que é.— Falei cruzando os braços pois já estava incomodada com o olhar dela. —Mas reconciliar é algo que não estou disposta a fazer tão cedo.— Fui seca em minha resposta.
—Eu entendo.— Segurou sua bolsa com força. —Eu realmente fui horrível com você, não posso pedir para voltar para sua vida assim tão facilmente.— Ela parecia triste, verdadeiramente triste. —Mas eu espero que um dia possa me perdoar.—
—Talvez, mas esse dia não é hoje.— A olhei com indiferença. —Eu ainda preciso de tempo—
—Um talvez já é o bastante.— Alma olhou em volta. —Eu vou mudar filha.— Prometeu com a voz firme.
Aquelas palavras quase me fizeram fraquejar e abraça-la como sempre desejei, mas eu já tive muitas decepções com ela para me render a um fio de esperança tão pequeno. Nós despedimos e Alma foi embora, não sem antes perguntar se poderia me visitar em outra ocasião, eu permiti com a condição de que ela me avisasse e assim nos despedimos.

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