CONTO DOIS: UM MONSTRO NO MEU QUARTO

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—Lisa!— A psicóloga me chama —Gostaria de compartilhar algo com o grupo hoje?—

—Não obrigada.— Falo fingindo um sorriso nada convincente.

—Lisa, já faz um mês que você vem e só observa; por favor faça um esforço.— Ela pede e todos do grupo me olharam, a situação é tão desconfortável que eu acabo me dando por vencida.

—Ok! Meu nome é Lisa.— Todos me cumprimentam de volta. —Eu estou aqui porquê tive uns problemas com a minha família.— Eu penso em encerrar por aqui, mas não foi o que aconteceu.

—Que tipo de problema?— Um dos pacientes pergunta aparentando estar interessado.

—Não é da sua conta.— esbravejo furiosa com seu questionamento. Nunca gostei de estranhos me fazendo perguntas ainda mais sobre este assunto.

—Lisa!— A doutora me repreende com o olhar.

—Desculpa.— Digo baixando o tom de voz.

—Está tudo bem, é difícil falar sobre nossos problemas.— O homem se mostra calmo e receptivo as minhas desculpas.

—Bom, quando eu era criança meu pai foi assassinado em um assalto e pouco tempo depois minha mãe tirou a própria vida.— Eu começo a falar rapidamente não sei dizer se foi pela presa em acabar com aquilo ou se foi pelo fato de estar guardando tudo a tanto tempo. —Depois disso eu fui morar com meus avós maternos... eles até eram bons pra mim.— A minha voz está carregada de saudade e tristeza.

—E qual foi o problema que vocês tiveram?—Uma moça ruiva pergunta, seu nome é Gabriela.

—Os problemas começaram quando eu tinha sete anos e nós fomos passar o fim de ano na casa da minha tia que morava em outra cidade.— Começo meu relato meio atropelado. —Quando chegamos lá tudo estava muito bem, matamos a saudade uns dos outros.  Foi na terceira noite que os problemas começaram. Naquela noite eu acordei de madrugada com uma mão gelada tocando meus pés, eu gelei na hora. Na minha cabeça só lembrava das historias que os filhos da minha tia contavam sobre o bicho Papão.— Eu está vermelha de vergonha pelo que dizia. —Fiquei com medo quando comecei a sentir a mão subindo pelas minhas pernas, então eu me encolhi e joguei o lençol sobre minha cabeça rezando silenciosamente. Não sei quando tempo se passou, eu apenas fiquei lá até finalmente adormecer.—

—E o que aconteceu?— Gabriela pergunta com o corpo totalmente voltado para mim.

—No dia seguinte eu contei a todos o que aconteceu, mas disseram que foi só um pesadelo e ficou por isso mesmo.— Baixo o meu olhar lembrando da reação dos meus avós. —Mais tarde naquele dia meus primos me chamaram pra ver um filme e quando chegou na metade eles saíram e não voltaram mais então eu comecei a ouvir uns sons estranhos pela casa, o ocorrido da madrugada mexeu muito comigo e ouvir aqueles sons me deixou apavorada... eu saí da sala gritando por meus avós.— Balanço a cabeça negativamente pela inocência que tinha na época. —Quando os vi eu abracei os dois dizendo que havia um monstro na sala, minha tia e o marido foram ver o que havia acontecido e voltaram com meus primos. —Suspirei. —Eles estavam fazendo os barulho para me assustar.— Coloco a mão sobre a testa quase chorando, eu era tão inocente naquela época. —Naquela noite eu quis dormir com meus avós, mas eles não deixaram pois a cama era pequena e eu tive que dormir sozinha.—

—E o tal fantasma apareceu de novo?—Um homem perguntou.

—Não.  Se passaram alguns dias e nada.— Todos se aliviam com minhas palavras. —Mas, durou pouco. 3 dias depois eu ouvi passos no meu quarto novamente. O quarto estava escura, mas eu senti quando aquilo sentou na cama e tocou minha coxa.— Apertei forte as mãos.

—E o que você fez?— A ruiva pergunta. Eu olho para a psicóloga e ela acena positivamente.

—Eu fechei os olhos e rezei pra tudo acabar e o que quer que estivesse lá fosse embora. Aquilo ficou alguns minutos, eu ouvia sua respiração ofegante.— minhas mãos se agitaram. —Eu pensei que aquilo fosse me matar ou sei lá, me arrastar para debaixo da cama então eu fiquei imóvel até aquilo parar, mais uma vez eu adormece sem ver o que era.— A essa altura do relato minha respiração já está ofegante. —No dia seguinte contei a todos o que aconteceu e mais uma vez ninguém acreditou.— Meu olhar se entristeceu.

—Que droga!— ouvi alguém falar. —O que estava no seu quarto ainda voltou? Você descobriu o que era?— Levanto o rosto para ver um rapaz me olhando preocupado.

—Eu... posso deixar isso pra outro dia?— olho todos com lágrimas nos olhos e com as mãos vermelhas de tanto que as estou apertando.

—Claro que sim.— Fala um homem de meia idade que, como a maioria ali, o nome eu não gravei na memória.

—Muito bem pessoal! Palmas para Lisa, que pela primeira vez compartilhou algo conosco.— A doutora fala e todos aplaudiram, eu estou envergonhada com tudo aquilo, porem não tenho como fugir pois é o patrão para todos que avançavam em algum aspecto.

Quando todos saem, vou até a sala onde a psicóloga estava, eu quero falar sobre algo que aconteceu recentemente e não consegui falar durante a sessão.

—Fico muito feliz de ver você se abrindo com outras pessoas além de mim e sua namorada.— Ana Fala guardando alguns papéis.

—Obrigada pela paciência, Ana.— eu digo com um sorriso tímido.

—Se sente melhor?— ela tentou se aproximar, eu fiquei assustada com seu toque e me afastei. Toda a situação de mais cedo me deixou desconfortável. —Desculpa, Lisa! Me empolguei com a notícia e esqueci que você não gosta de toques.— Ela se afasta me dando espaço.

—Não, tá tudo bem.— Falo respirando rápido. —Me desculpe pela minha reação exagerada, Ana. É que falar disso me deixou tensa.— Me explico. Eu já estava tento uma evolução com relação ao toque, mas depois da sessão a sensação de pânico voltou.

—Não, eu que invadi seu espaço.— Ela ri sem jeito. —Mas e então? Se sente melhor agora que começou a se abrir com seus colegas?—

—Não muito. Eu só falei porque estava me sentindo mal.— Falo baixinho.

—O que houve?— Ana pergunta ao sentar em sua cadeira, ela me olha com preocupação. —Senta aí.— Aponta para a cadeira.

—Eu tive outro pesadelo, eu estava na casa dos meus avós... do nada ele apareceu no topo da escada, me olhando com aqueles olhos assustadores...— Paro de falar para evitar o vômito. —As vezes ainda tenho a sensação de que algo me vigia nos cantos escuros, mas evito olhar.—

—Está tudo bem, Lisa! Esses pesadelos irão aparecer as vezes, mas eles não podem te machucar.— Ela argumenta inclinando o corpo em minha direção. —Essas sensações são comuns, você era só uma criança e sua mente absorveu tudo de uma forma diferente. É natural que sua criança interior ainda tenha medo do escuro.—

—Eu sei, mas foi tão real.— Respiro fundo. —Bom, eu só queria falar desse pesadelo. Agora tenho que ir, tchau!— Falo me levantando e caminho até a saída.

—Tchau, dá um beijo na Luiza por mim.— Ana se despede.

Luiza é minha namorada e a responsável por eu procurar ajuda psicológica, ela me ajudou muito todo esse tempo em que estamos juntas, mas estava ficando difícil lidar com tudo então ela me apresentou Ana na esperança de ela me ajudar. A próxima sessão em grupo seria na sexta, passei a semana me preparando para o próximo encontro,  eu queria que demorasse o máximo possível, mas chegou mais rápido do que eu esperava.

—Olá a todos, sejam bem vindos a mais uma sessão.— Ana diz brindo os braços e todos a cumprimentam. —Vamos começar! Lisa, quer ser a primeira?—

—Eu prefiro ficar pro final.— Respondo.

—muito bem, então quem quer começar?—ela olha para o demais presentes.

—Eu, doutora.— Alan, o homem com quem eu fui grosseira na última sessão, levanta a mão animado.

E assim começamos mais uma série de relatos sobre como as pessoas vieram parar aqui, como estão lidando com a depressão ou qual a origem da mesma. Tudo isso é bem cansativo para mim, estar com pessoas nunca foi meu forte, mas eu suporto da melhor maneira possível. Após pouca mais de uma hora a minha vez chegou.

—Muito bem, Lisa! Como prometido, é a sua vez de falar.— Ana sorri para mim. Eu olho todos e me preparo para falar.

—Ok.— Suspiro cansada enquanto ajeito a postura. — Como eu disse: Ninguém acreditou em mim, mas eu estava tão assustada com tudo que meus avós decidiram voltar pra casa mais cedo. Em casa as coisas voltaram ao normal, eu conseguia dormir tranquilamente sem ouvir passos no escuro.—

—É isso? Tudo ficou bem?— Gabriela pergunta com as sobrancelhas levantada e um ar de alívio.

—Por um tempo sim. Até meu avô adoecer e minha tia ter que se mudar pra cuidar dele, e a família dela foi junto.— Eu olho para o chão. —Na noite que eles chegaram eu voltei a sentir as mãos no meu corpo e a respiração alta e entrecortada.— minhas mãos se agitam novamente.

—Você contou para alguém?— Alan pergunta, sua voz me soa preocupada.

—Não. Ninguém iria acreditar em mim então eu decidi que iria descobrir o que estava fazendo aquilo. — Eu continuo com o rosto voltado para o chão e começo a cocar  minhas mãos por causa do desconforto. É algo que eu fazia quando criança, as vezes até me machucava. —Uma noite eu levei uma lanterna pro meu quarto e me preparei pra pegar o que estivesse fazendo aquilo. Era tarde da noite e eu acordei com os passos no quarto... eu peguei a lanterna...— aperto minhas mãos com força até ate a parte branca ficar vermelha. —E quando aquilo sentou na cama eu liguei e...— Coloco as mãos sobre a cabeça como se tudo tivesse acabado de acontece.

—Está tudo bem, Lisa!— Anna fala perto de mim, ela sentou ao meu lado e eu nem percebi. —Estamos aqui pra te ajudar! Não precisa ter medo.—  Levanto a cabeça e todos me olham com preocupação, dessa vez ninguém me olhava como a esquisita. —Quer parar?—

—Não, eu posso continuar.— Eu puxo o ar e o solto lentamente. —Quando eu liguei a lanterna eu não vi nenhum fantasma ou monstro sobrenatural. Não era isso que me tocava de madrugada.—


—E o que era?— Alan pergunta. Ana ofereceu sua mão para eu segurar e eu a aperto com força.

—Era o marido da minha tia.— Todos no local ficam surpresos com minhas palavras. —Ele ia no meu quarto a noite e se masturbava tocando meu corpo, por isso eu ouvia uma respiração... ofegante.— Eu seguro as lagrimas. —Eu liguei a luz do quarto e estava prestes a abrir a porta, queria ir até meus avós, mas ele me impediu.—

—O que ele fez?— Gabriela pergunta, eu não a estou olhando, mas percebo que sua voz esta assustada.

—Ele me segurou tampado minha boca e me jogou na cama dizendo que eu deveria ter ficado quieta como nas noites anteriores.— Enxugo uma lagrima. —Eu disse que contaria o que ele estava fazendo para meus avós... mas ele disse que ninguém acreditaria em mim, assim como não acreditaram antes.— Começo a chorar na frente de todos. —Ele se deitou por cima de mim... e... eu só conseguia rezar pra tudo acabar logo.— Quando consigo falar baixo a cabeça e Ana  me abraça como forma de demonstrar apoio. Meu rosto agora está banhado em lágrimas.

—Desgraçado, filho da puta!— Ouvi alguém falar.

—Sinto muito, Lisa!— Gabriela fala se aproximando de mim e toca minhas mãos, instintivamente eu quis evitar seu toque. Eu ainda nego qualquer aproximação de estranhos. —Desculpa, eu não vou fazer de novo.— Promete me olhando seria e algumas lágrimas em seu rosto.

— Obrigada.— Falo baixinho. —Na manhã seguinte eu não saí do meu quarto, minha avó ficou preocupada, mas como a situação do meu avô era grave ela se concentrou mais nele.— Volto a falar, agora eu quero colocar tudo pra fora. —Minha tia ficou conosco por duas semanas até que meu avô faleceu, nesse meio tempo o marido dela tentava ficar a sós comigo, mas eu sempre conseguia escapar... mas, no dia que meu avô séria enterrado ele me trancou no quarto e me estuprou enquanto todos lamentavam a morte de meu avô no andar de baixo.— As lágrimas continuam a cair e a sensação de estar suja toma conta de mim, sinto como se eu estivesse sendo cortada por facas afiadas. —Quando eles finalmente foram embora eu peguei toda a roupa de cama e joguei fora, eu me tranquei no quarto e chorei o dia todo, minha avó achou que eu estava triste pela morte do vovô, mas eu nem conseguia sentir a dor da perda. Depois disso eu passei a dormir no chão e continuei a trancar sempre a porta do quarto. Eu continuo a fazer isso até mesmo até hoje.—

—O que você fez depois disso?— A ruiva pergunta.

—Eu fiquei morando com minha avó até ela falecer, quando isso aconteceu minha tia me convidou para morar com ela, eu obviamente recusei. Fiquei morando sozinha por alguns anos até conseguir me mudar para está cidade.— Respondo lembrando do quanto foi difícil aquela época, lidar com o trauma foi difícil tanto que nesse momento me encontro em uma sala de terapia em grupo.

—E o marido da sua tia, o que aconteceu com ele?— Alguém pergunta.

—Eu não falei mais com qualquer um da minha família, apenas troco algumas mensagens, mas recentemente eu li uma notícia no site da minha cidade natal que dizia que ele foi assassinado. Pelo que li ele estuprou a filha de um vizinho que era da polícia e quando soube matou ele a tiros.— Respondo e ouvi um dos pacientes dizer “foi bem merecido”. —Alguns dias após essa notícia eu recebi um e-mail da minha tia, ela queria reestabelecer o contato, acredito que a morte do marido fez  ela ligar os pontos e deduzir o motivo de eu ter me afastado, eu ainda não respondi, ainda não estou pronta.— Fico em silêncio olhando para o chão, eu ainda sentia vergonha por tudo que disse, embora soubesse que eu tinha o apoio daquelas pessoas eu não podia evitar.

—Muito bem, Lisa.— Ana toma a palavra quando percebe que eu não falaria mais. —Quero lembra-los que falar sobre seus traumas é importante para que possamos vence-los juntos. Todos aqui passaram por coisas assustadoras e que deixaram marcas profundas, mas todos tem capacidade de superar isso.— Ela começa a bater palmas e todos a acompanharam, menos eu. —Estou muito orgulhosa de todos. Principalmente de você, Lisa. Você deu um grande passo em direção a recuperação.—

—Nós vamos te ajudar no que precisar, Lisa.—Alan fala e eu forço um sorriso pois estou desconfortável demais com todas as atenções voltadas a mim.

—Muito bem, terminamos mais uma sessão, eu espero todos aqui em uma semana.— Ana fala e um a um eles começam a sair.

Eu permaneço em meu lugar até que todos saiam do local e ficamos apenas eu e Anna.

—Se sente melhor?— Ela pergunta sentada ao meu lado.

—Na verdade eu me sinto estranha. Parece que tem algo revirando a minha cabeça, eu não sei explicar.— Confeço balançando minha cabeça.

—Isso é normal. Falar dos traumas causam um certo desconforto, mas no fim você deu um grande passo.— Ela sorriu para mim. —Agora você finalmente começou a trilhar o caminho para superar isso.—

—É, acho que sim.— Retribuo o sorriso e levanto para seguir meu caminho.

“Falando assim parece que foi algo pequeno, mas para mim foi a coisa mais difícil que já fiz na vida”. Penso comigo mesma dando alguns passos lentos pelas ruas enquanto uma fina chuva caia sobre o guarda-chuvas..

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