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 - Levanta do meu sofá! - Gritou César de trás da porta, sua voz me fez despertar e ajeitar a bagunça. Soprei as cinzas do centro e corri com as latinhas para a cozinha.

Já tinha passado horas desde a discussão com Vitória, minha barriga roncava de fome e eu me abastecia e me mantinha com mais álcool, apenas álcool. Antes que pareça uma forma de superar o que aconteceu: Não é. Bebida é um alívio ao ócio, que se intercalado com cigarro e qualquer programa de Tv faz o tempo voar.

- Pedro? -

Me analisou dos pés à cabeça, aquela análise lenta, minuciosa, com o toque das sobrancelhas em sinal de desgosto, indiferença.

- Deixou alguma cerveja para o dono da casa? -

- Desculpa, não deixei. - Respondi rindo.

A análise continuou. Lavou as mãos me olhando nos olhos, o esverdeado de seus olhos fundos e cansados de bebida, talvez visse algo que nem eu mesmo conseguia. César sempre foi assim, talvez por ser filho de dois psicólogos, quem sabe por ter uma criação tranquila... Vitória já justificou seu comportamento falando sobre signos, ascendentes e luas, uma infelicidade que não lembro de nenhum dos três.

Como se não bastasse o sucesso em sua criação, foi também o primeiro entre nós a se formar, conseguir um emprego e se empenhar em cada uma de suas obsessões. Seus problemas? Não gostava de se relacionar, sempre que se embrenhava numa paixonite fugia. Não fazia dos seus últimos relacionamentos novas amizades, mas era colega de todos. Prezava pela política de boa vizinhança, indo para suas formaturas, aniversários...

- Você tá péssimo. - Deu o veredito, secando as mãos nas minhas roupas. - Vai conversar com o seu irmão agora, ou precisa beber mais um pouco?

- Eu vacilei muito dessa vez? - A pergunta saiu como um reflexo, sem que eu percebesse.

- É só o que você tem feito, Pedro. Você sabe disso. - A naturalidade pode ser um pouco assombrosa, mas era apenas eu e ele, nunca tivemos filtro. - Mas sobre o que exatamente estamos falando?

- Vitória.

- Sim. Muito. - Respondeu rápido, em tempo recorde. Enchia de água uma leiteira, até a metade. - Ela te dá uma chance depois que você - Uma ênfase no "Você". - pede uma chance, você acorda e sai como se tivesse deitado sozinho?

- Vocês exageram. Eu não me incomodaria se transasse com alguém e não visse a pessoa no outro dia. - Minha função: Colocar quatro colheres de café no coador. - Até preferiria.

- Como se o mundo fosse sobre o que você pensa. "Não fiquem magoados, Pedro disse que não ficaria." Me pergunto sobre quando você vai amadurecer. - Lavou a garrafa térmica. Posicionou na pia a garrafa, o coador e o filtro, nessa ordem.

- Amadurecer? Não sou eu quem está reclamando agora. - Levei a leiteira com um pano enrolado na mão, o vapor parecia cozinhar minha carne.

- Reclamar não tem a ver com imaturidade. Você está reportando algo, se expressando. Não é porque você se esconde de tudo o que sente que as outras pessoas deveriam fazer o mesmo. - Pegou as nossas xícaras, as que usávamos desde os primeiros cafés juntos, uma longa e amarela, e a outra espaçosa e pequena, a minha. - Você foi insensível, por mais que negue isso. Você sim está sendo infantil, por mais que se negue a enxergar isso.

- Pedro.

- Não, não terminei. - Duas colheres de açúcar no meu, uma e meia no dele. - Quantos caras já não fizeram isso com ela? Se lembra de Lucas?

- Não fala dele. Era um babaca. - Me estendeu um pote de vidro com leite em pó, neguei. Minha intolerância me mataria ainda essa noite.

- Vocês não são tão diferentes agora. Ambos saíram de fininho, não enviaram mensagens, fizeram pensar que a Vitória estava errada... É. Me parecem assustadoramente semelhantes. - O primeiro gole o fez perceber que não tinha colocado a quantia certa de açúcar. - Pelo menos você a respondeu, não é?

- Não.

- São iguais. A diferença entre vocês é só a cor e a marca de cigarro.

Me olhava rindo, por mais que a crítica fosse séria, e admito que até mesmo precisa. Me conhecia o suficiente para saber que eu estava desconfortável. me encarava por cima do nariz, coçando a barba cheia que emoldurava seu rosto, bebendo o café... Apenas me encarava, esperando por sua tréplica.

- Não me sinto capaz de me apaixonar de novo. Nunca senti que podia fazer isso na verdade. Me sinto destrutivo. Não é sempre que vou estar de bom humor, não é sempre que vou ter um olhar amoroso ou sei lá... Segurar sua mão. Sempre que me esqueço de quem eu sou, tento novamente, e as histórias se repetem independente da outra pessoa. - O café estava delicioso, me deu o calor que a cerveja ajudou a repelir. - Não vou falar sobre o que você já sabe.

- Você tava indo bem, só continua.

- Meu problema com drogas, meus vícios, a casa que está sempre bagunçada. Minhas compulsões, tem muita coisa errada César. Desde que ela morreu eu não me reconheço mais, não sou mais o mesmo de cinco anos atrás. Você lembra de como eu e Vitória éramos?

- Terríveis de chatos. Era tanto grude que dava nojo.

- Tínhamos dezesseis.

- Eu já tinha dezoito, vocês eram chatos sim.

- Sinto falta dela. - Foi o único momento em que o seu olhar correu do meu. - Passei a tarde no sofá, conversamos hoje cedo... Nem falei pra ela que sabia que estava errado. Ainda tentei encostar nela, acredita?

- Você se supera. Se conheço Vitória ela se contorceu de nojo. - Terminado o café, deixou para fora da pia. - Pedro. - Seu olhar estava firme novamente. - Não parece que tem mil e um bloqueios quando você fala comigo, é tão difícil dizer a Vitória o que sente?

E realmente não era. Falar não era o problema, nem me causava medo. Mas os seus olhos brilhando a cada promessa de melhora me destrói no momento em que erro. Nada fere mais do que a sua expressão de decepção, nada incomoda mais do que o seu corpo recuando como se eu voltasse a ser estranho... E o silêncio, como dói o silêncio. Ele não vem como uma forma de punição, como meu pai fazia. Esse era na verdade um silêncio doloroso, de olhos afogados, perdidos.

Vi novamente hoje pra me lembrar o quão ruim é.

- Não quero que vá para sua casa hoje, deve estar uma bagunça. - Deu a conversa como terminada, é certo que me viu travado. - Dorme aqui hoje.

Sumiu dentro do pequeno apartamento. Ainda na cozinha ouvi o seu movimento pelos quartos, me apoiei na parede e assisti calado o seu esforço. Tirava a caixa do quarto de visita e colocava em um cantinho da sala, umas ao lado do sofá, outras ao lado da porta. Por fim estava tudo fora do lugar, mas de alguma maneira organizado, organizado como ele.

- Mas Pedro, vou ficar com bastante raiva se você me fez te ouvir sem a intenção de mudar. - Apoiado no seu braço como um cabide tinha uma toalha, um short e um moletom rosa de Vitória. - Toma um banho, descansa e tenta fazer algo diferente amanhã. Poderia até te dar uma das minhas camisas, mas preferi te castigar com o cheiro dela a noite toda.

- Você é um amigo maravilhoso, sabia?

- Claro que sabia bobinho. - E "boom", me fechou dentro do banheiro.  

Como Nero amou RomaOnde histórias criam vida. Descubra agora