terceira carta

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Carregava uma espada que tinha pegado de general sem que ele percebesse. Atrevido, fazia articulações para girá-la, fingir que estava na batalha mais épica de todas, apontá-la na cara de meu inimigo e vê-lo implorar por misericórdia. Mal sabia eu o que acontecia em meu reino no momento. O cão viu a luz do sol raiar em cima de sua tigela vazia. Seu dono saiu para trabalhar, eu conhecia aquele homem. Era um dos encarregados de descartar os cadáveres para a pilha de lixo. Passava pelos portões com uma carroça, puxada pelo mesmo cavalo que mencionei na primeira carta. Era encarregado de dirigir o animal, ir até o descarte, arrastar pelas pernas aqueles de rostos cobertos por mortalhas, por-los juntos à montanha de cinzas, jogar óleo e atear fogo. Leitor me contou sobre a pureza do corpo tida pelos antigos. Enquanto ainda vivo, cada pedaço era precioso, pois era lá onde habitava a alma. Porém após o falecimento, tornava-se imundo, digno de desprezo, inútil. Tudo que lhes restava era descartar a matéria orgânica numa vala, esperar que os abutres devorassem e fizessem coisa nova do que não prestava. Por isso, diferente do que se espera atualmente, tais aves eram símbolo da ressurreição.

Sem abutres ou quaisquer outros necrófagos presentes, nos restava usar isqueiros. Era isso que o dono fazia quase todos os dias, exceto quando havia bons tempos para o povo, intervalos onde ninguém morria. Noutros meses do ano ocorria o oposto: meu povo inventava de fazer festas, alguns tropeçavam e batiam com a cabeça. Havia avisado-lhes para seu bem que não comecem trigo, pois cansei de vê-los infectados de fungos e serem jogados na pilha de destroços depois de alguns dias. Apenas me obedeceram por uns meses, mas depois que um dos rebeldes inventou de fazer uma receita antiga chamada "bolo", nunca mais me obedeceram. Aquele homem ficava de folga quando o trabalho era ocioso, voltava para casa, passava o dia inteiro deitado ou lendo uns romances ou, como disse antes, embriagado. Mas naquela vez teria de trabalhar, puxar umas três dezenas de pernas, ficar suado até que suas roupas fedessem, um cheiro que eu nunca nem imaginei poder sair de um humano. Teria de fazer aquilo antes do pôr do sol, não apenas por causa do escuro, mas pelas criaturas às quais também mencionei.  Ao voltar, havia um banheiro à porta da entrada, roupas limpas e sabão o esperava. Tirava a máscara, que o impedia de respirar o hálito de doença, de sua face e fazia questão de que ficasse o mais limpo possível. Deixava as peças molhadas de suor no balde de lixo; seriam incineradas também no próximo turno. Pegava o salário e partia para sua mesquinha casa. Todos os dias, lá estava o cão, o esperando, balançando sua cauda e mostrando sua língua para o carinho de seu mestre. Daquela vez, ao abrir a porta, não o encontrou. Havia a esquecido aberta, era muito provável que apenas tivesse escapado. Pegou uma corrente, sabia onde devia ter ido. Na praça, lá se encontravam barracas de gostosuras, um menino admirando um poeta, suas recitações e, é claro, seu bicho de estimação. O animal nem ao menos havia notado a presença do dono quando sentiu uma argola de ferro o agarrando pelo pescoço. Foi puxado a força, como era feito com os defuntos, enquanto latia em súplica para permanecer ali; as tortas que o vendedor trouxera pareciam tão suculentas… De atenção fácil, o menino seguiu os dois, vendo que o cachorro lhe chamava a atenção. Viu o dono prender o cão dentro de casa e entrar deixando a entrada semiaberta. Ficou ali, em pé curioso para ver se sairia hora ou outra, se poderia ver de novo a linda pelagem, se o dono permitiria a ele tocar no bicho. Assustou-se quando viu meu general em pessoa bater à sua porta; os dois homens saíram às pressas, como se algo urgente tivesse acontecido. Aproveitou que eles estavam distantes, que a porta fora deixada aberta e entrou na casa. Viu o cão de olhos caídos, aproximou-se estendendo a mão para acariciá-lo; recuou sua cabeça gemendo - tinha medo. Ainda assim, não desistiu de fazer novo amigo, aproximou-se dele e soltou suas correntes. Dessa vez abriu os braços para ele: aceitou o sinal de amizade, acolheu o abraço do menino. 

Levantou-se, começou a vasculhar a casa. Algumas garrafas de vinho por serem abertas, uma estante cheia de livros de páginas amareladas, várias gavetas. Abriu uma delas, encontrou vários frascos com líquido azul. Tinha ouvido do poeta que muitos no reino usavam tal bebida para dormir facilmente à noite. 

       — ele não vai mais perturbar você. — abriu uma das rolhas e pôs o remédio misturado ao vinho.

Esqueceu que o trovador também contou-lhe sobre o corpo humano suportar apenas algumas gotas do azul.

Roubou o animal para si, deu um nome, que até então não possuía. Mal se conheceram e já eram melhores amigos. Inclusive aprendeu a falar a língua canina:

      — quer dizer que alguém ousou usar tua espécie como xingamento? Indigno ultraje!

Presságio; nuvens vermelhas surgiram ao longe, sinal de líquido corrosivo. Todos iriam enfiar logo suas cabeças num buraco o mais rápido possível, pois a água cairia quente e queimaria a pele de qualquer um que nela encostasse. Leitor contou-me sobre sinais dessa chuva; deixava vários esqueletos de gado caídos no chão. A única parte dos corpos que não se corroía eram os ossos. Todos deviam se enfurnar debaixo de abrigos de pedra e esperar que a tempestade acabasse. Após a espera, a água deixada para trás perdia seu tom de sangue, tornava-se comum; qualquer um poderia até mesmo beber dela. Também contou sobre o rio Lítio, presente ali perto, capaz de curar enfermidades. Se a chuva viesse de repente, que pulasse em seu ciano transparente, mergulhadas e tivesse seu couro preservado.

Minha mão direita levava chicotadas todos os dias. Não me refiro ao membro de meu corpo, mas à mão de meu reino. Sempre que seu dono chegava com nova carga de defuntos, logo prendia nele a carroça e o dirigia com um chicote em mãos. Outros dias foram acompanhados pelo cão, que corria atrás deles, buscando ver o que aconteceria ao conteúdo da carroça. Cavalo não estava a fim de carregar mortos num feriado; bateu o casco, teimando em não ir. O homem não perguntou duas vezes, usou o açoite, um chicote em sua face. Cão assustou-se com o estalo do golpe, decidiu não ir com eles, voltou ressentido. No dia da torpe chuva, Cavalo viu  nuvens vermelhas no horizonte, fora deixado amarrado numa árvore à beira do rio, esperando para carregar nova leva. Vendo o céu tingido de vermelho, sabia o que estava por vir. Lembrando do amigo, cão disparou em corrida sem ao menos avisar o porquê. Este o seguiu, um pé atrás do outro, passando em meio à multidão, inúmeras pessoas que iam na direção oposta. Esqueceram a entrada do reino aberta, não havia tempo para baixar as barras de ferro, muito menos coragem. Saíram; a chuva já caía ao longe. Às pressas desamarraram as cordas; o cão as roía com seus dentes, o menino puxava o nós com seus dedos. Não havia tempo de voltar às muralhas, então às pressas saltaram os três no rio.

Num de meus passeios reais, não me importava com o ácido; usava um objeto antigo que leitor me deu, cujo ele chamou de guarda-sol.co líquido escarlate apenas corroía matéria orgânica, logo estava protegido, caso não tirasse minhas luvas de cobre ou minha roupa de lata. Vi a cena dos três mergulhados no rio esperando que o perigo passasse. Julguei ser o ato de maior coragem já vista por minha pessoa, então apontei para eles: "Eu, como rei, nomeio o cão, cavalo e menino, respectivamente, minha mão direita, mão esquerda e herdeiro ".

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