Então, certo dia o poeta se encontrou nos seus agouros mais tristes: "E não sei realmente qual a ordem dessa tristeza, se uma vez houveram dias felizes, uma vez tudo podia se justificar, surgira em algum lugar imundice, e de alguma forma se espalhou e tudo engoliu." Noutra parte encontrava-se um cão, fiel ao dono. Sempre vigiava a casa contra os ladrões; deixava de dormir algumas noite pelo bem daquele que o protegia. Certa vez viu a porta aberta, escapuliu para as ruas, logo ganhou os olhos do menino: " você é tão bonito! Qual seu nome?". Não respondeu, é claro, pelo menos não de forma que humanos pudessem ouvir. Jamais entenderam sua língua, mesmo quando berrava a verdade escancarada. Uma vez tentou roubar - digo abocanhar em verdade - uma bela coxa de frango de um vendedor, tentativa falha e recebida à ofensas: "fora daqui, cão!". Não hesitou em dar-lhe a resposta: "olha aqui, desde quando cão é xingamento? Somos leais, caçamos, vigiamos, ajudamos cegos... nosso nome devia ser é muito elogio!". Mas tolo cão... ainda é capaz de idolatrar seu dono, mesmo depois de tudo. Pobre cão... ainda não tinha aberto seus olhos quando seu dono chegou bêbado em casa, nem olhou para ele, jogou-se num assento e apagou-se. Seu estômago vazio almejava que tivesse ao menos uma migalha, mas tudo que tinha era: vômito fedido no chão. Lembro de sensação parecida do lado de fora de meu reino, quando perambulava com meus farrapos.
Sei como onde andei foi formado. Houve grande seca; os herbívoros não tinham o que comer, enquanto os carniceiros rezavam para encontrá-los. Junto a isso, no norte, ocorreu grande gelo. Humanos, poucos afinal, remanesciam escondidos. Antes da catástrofe, a população aumentara tanto que chegara ao limite previsto, encontraram um jeito de se reproduzir sem destruir a morada de outras espécies. Carne fresca - a terra precisava comer. Quando acharam abrigo, viram que isso não era impedimento para que vários fossem aos montes; de febre, infecção, a própria fome. Eles jogaram fora os corpos dos defuntos, fizeram montanhas, apodreceram; tornavam-se apenas ossos. Não era possível distinguir onde a ossada de um terminava para a outra começar, e o vento trazia mais areia para cobrir a carniça; lá vinha outra leva de corpos, pronta para ser novamente coberta. Sorte daqueles que têm a honra de serem enterrados, falecidos num sepulcro - mas quem se importa com flores quando se está morto? Ninguém. Talvez o poeta disse algo sobre: "E elas continuavam lá; se alguém pisasse na areia que nos cerca, os mortos presentes nelas gemiam, implorando que os deixassem". No meu reino era tolerância zero contra doenças: abandonaram-se as lápides. Qualquer um que morresse, independente se falecera de pneumonia ou de um homicídio, era queimado, sem exceção, sem distinção. Seus corpos jogados na pilha de destroços, ateada às chamas, noutros tempos chamadas geena, e suas cinzas misturadas acima das areias de almas. Poderiam descansar juntas por toda a eternidade.
Não aguentava mais o vazio no estômago, descansava ao lado de seu humano. Desejava que não se espalhasse ao resto dos órgãos. Hibernei por vários anos sem haver um assassinato sequer. Qualquer um que tentasse fazê-lo em meu reino era repelido para fora. Num abismo, próximo dali se encontrava, era lançado vivo. Uma falha tão funda, seu ponto mais baixo perdia a impressão tridimensional - longe demais tudo se assemelha a papel. Nenhuma tolerância; já tínhamos inimigos demais do lado de fora, não precisávamos de conflitos internos. Em meio às matas distantes dos muros, criaturas atacavam os caçadores; preferia-se valorizar as colheitas que a carne. Melhor esperar meses por um prato de comida de que ter seu peito atravessado por um espeto. Tais criaturas não atacavam os animais selvagens, poderiam dormir tranquilos ao seu lado. Subi numa das torres, falei com o general. Todas as noites seus arqueiros vigiavam bem do alto se os arredores estavam limpos, eram águias treinadas. General disse uma vez que por diversão miravam nas formigas na base da muralha e as condenavam na primeira tentativa. Era ele quem os desenvolveu, era professor de armas.
O cão latiu, estava impaciente. Seu dono segurava a garrafa que esvaziara. Latiu novamente - um golpe em sua cabeça. Não rosnou àquele ato, embora sua testa doesse. Deitou-se num canto, talvez a fome fosse embora se dormisse.
Enquanto isso, eu conversava com o leitor. Meu pai fez questão de mandar caçadores para fora do reino em busca de escritos, quando meu reino era seu governo. Achou uma criança sem pais, seu protegido, deu-lhe a função de estudar. Teríamos uma enciclopédia humana em caso de necessidade. Leitor era mais velho que eu, sempre lembro de estar ocupado lendo algum de seus livros. Pedi que dissesse sobre a morte, se há espírito que viva após o evento, se o poeta estava certo sobre os restos fora do reino. Se em caso afirmativo, lá é lugar de conforto ou ranger de dentes. Sheol; havia muitas versões, teria de morrer para saber a verdadeira. Para certos povos, vida após vida; não suportaria repetir essa desgraça de novo. Para outros, julgamento; fosse pior. Nunca fui cruel, porém nenhum santo. Certamente alguém fosse corajoso o suficiente para se matar, escrever sobre o outro lado e reviver para mostrar-nos. Toda essa informação me deixou angustiado; fui até o músico. Sempre trazia à mim timbres novos, dessas máquinas - digo, instrumentos que ele reconstruía. Um desses era chamado de "fraco". Tinha botões, uns claros, uns negros intercruzados, diferença de força, pouca ou muita, daí seu nome. Tinha uns papéis de séculos, bolas com pernas, cinco linhas para a altura do som. Pedi a canção mais melancólica possível; lá foi ele e sua mania de tocar apenas com uma mão.
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Rei dos ratos
القصة القصيرةUm conto em forma de cartas, onde o fantasma de um rei conta sua situação para um amigo. A história se passa no mesmo universo de "Livre servidão", que também está presente nesse mesmo perfil