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"Há algo muito bonito na amizade que deveríamos encontrar no amor. Respeito à liberdade do outro. Não há essa ideia de posse" Jerome de 'Le Genou de Claire' podia estar pensando em Cecil e Tom. Se ao menos existissem em 1970 quando Éric Rohmer pensou no roteiro. Porém, o reflexo disso, se sucedeu no momento em que a epifania conjunta sobre a montagem do curta ocorreu. Mesmo com a mesquinharia dela. Como também o orgulho dele. Com muita dor de cabeça, o respeito foi alcançado, em suma maioria. Mesmo que Tom quisesse colocar The Smiths na trilha sonora da parte da cineasta em ascensão e isso a deixou encabulada. A ideia foi descartada. Ele se afrouxou, como andava fazendo muito. Aprendendo a lidar com o gênio forte. Ela amolecia sua toxidade.

Mas, momentos ainda traziam aquele aperto. Uma ansiedade. Com no dia em que viu Hyde conversando tão confortavelmente com sua, suposta amiga. Atual colega de trabalho acadêmico. Não sabia a nomenclatura adequada para resumir a relação curiosa que tinha com aquela maldita birrenta francesa. E como hoje: estacionando na frente da casa. Iriam trabalhar com algumas questões mais técnicas antes de finalmente irem para a melhor parte, as gravações. Estacionou sua moto com tensão. Parecia que já imaginava o que aconteceria. "CICI, SEU NAMORADO NORMIE CHEGOU" Aquela voz do telefone. Aquele pirralho que atendeu a porta. Sentiu calafrios. Olhou pro alto e viu da janela, a criatura adolescente, loira, cheia de espinhas e maldade. Um grito agudo na puberdade e uma comoção no andar de cima, fez sua vista seguir algo sendo lançado de onde Gustav estava. Em câmera lenta, viu um celular se espatifando na calçada quente.

Em questão de segundos a porta da casa se abriu, com o caçula dos Beaurepaire em desespero, aos tropeços. Se sentiu vingado, por osmose. Seu notebook não foi mais o mesmo depois que aquele pequeno diabo, havia enviado um trava com vírus. Um silêncio que rasgou o dia quente. Olhares retraídos. "Fui eu quem joguei de propósito, perdi no LOL" Gustav disse, sério. O que nitidamente não era verdade. Cecil que havia jogado por ficar falando asneiras no parapeito da janela. Se percebia lágrimas orgulhosas presas nos olhos avelã. Da porta do hall de entrada, uma mulher madura, de fios dourados secava um prato de porcelana. Ela parecia curiosa. Tom supôs que fosse a mãe daqueles irmãos anormais. Caminhou sem jeito até a própria, coçando a nuca e a barba. De fato, beleza era algo que havia sido herdado dela. Não que ele achasse Cecil bonita. Ela era esquisita. Incomum. — Boa tarde... Eu sou o Tom. Estou fazendo um trabalho da facul com a Cecil. — Disse robótico. "Ele que mandou aquela bomba que fez ela quase incendiar o quintal" disse o anticristo, entrando aos empurrões para casa.

A madura olhou para nosso excêntrico protagonista. Ergueu uma sobrancelha. Algo que supostamente, a menina havia puxado. Aquele cinismo controlado. Estava pensativa. Fitou a camisa do Ghost e fez um sinal de cruz. Eram uma família religiosa. Havia esquecido disso. Maldita má impressão. Mas, por que Tom se importava? "Ah sim. Tom, ela me falou de você" deu um sorriso sincero. E julgador. Muito julgador. Mas, havia dito bem ou mal? Estava confuso. Como alguém tão sobrenaturalmente calma, poderia ter parido o desespero e o caos, duas vezes? "Eu sou Catherine, pode entrar, por favor" o convidou para dentro. Esse, que ficou parado como uma estátua. Observando a quantidade astronômica de fotografias na parede e em cima dos móveis.

Fotos de Cecil quando criança, sempre com aquela feição aborrecida de sempre: na praia, na igreja, no parque de diversões, andando a cavalo. Comendo um sorvete libanês de pistache, ela parecia mais otimista. Um sorriso vago quase transparente. Já o caçula sempre mostrando a língua, fotos tremidas, pois, simplesmente não parava quieto. Completamente embutido numa sensação diabólica. Em todas as fotos, sempre havia um homem. De expressão dura. Olhar vago. Enigmático. "É meu esposo. Otto, rabugento como a Cici" deu uma risada melódica. Com um arzinho baixo astral. Pelo ar triste, eram divorciados ou o pai morto. A colega nunca havia falado sobre sua família sem ser para ofender seu irmão. Talvez, Tom não sabia como lidaria, caso seu pai, tão bem humorado e falastrão perdesse sua felicidade. Sumisse, morresse. Sua mãe, no mínimo morreria de tristeza.

— Finado esposo. Ele se matou. — A primogênita murmurou do alto da escada. Aquilo deixou Tom um pouco desnorteado. Por que falaria assim tão dura e objetiva? Com normalidade? Sabia que era sem coração. Mas, aquilo deixou o rapaz, por alguns segundos intermináveis, sem palavras. Por sua vez, a dona da casa não parecia passiva a fala dura, mesmo afetada, óbvio, estava falando do marido falecido. Ela apenas encarou com firmeza sua cria e sorriu para o convidado. "Se precisar de alguma coisa, pode pedir a essa idiota" Catherine piscou e apontou com a vista para a filha. Querendo ou não, a garota ser assim, tão desfiltrada, causou um clima, no mínimo chato. Mas, ainda sim, havia curiosidade. Como era a vida de Cecil? Sabendo o que havia acontecido com o pai da família, podia perceber agora a insignificância pela vida na feição mesquinha pelas fotos. Era o mesmo ar que a morena transpassava. Tom se estremeceu.

Como sempre, seguiu Cecil como um rabo. Passou pelas escadas, viu a porta do quarto do garotinho maldito aberta, completamente escuro com luzes do computador piscando insanamente. E um chiado histérico saindo do fone de ouvido. Passou reto. Chegaram no quarto da anfitriã por livre espontânea forçada. Não havia outro lugar para se encontrarem. — Sua mãe faz o que? — Perguntou ingênuo. "É professora do fundamental" retrucou sem interesse. — E seu pai? — Forçou com ressalva. — Mexia com computadores. — Concordou consigo mesmo. — De onde saiu seu amor por cinema? — Nem mesmo Tom sabia por que estava fazendo tantas perguntas. "Isso é um interrogatório? Minha *grand-père Amélie" suspirou e apontou para um porta retrato com a garota e uma senhora simpática com uma câmera na mão. Naquela foto Cecil estava sorrindo. Era sua avó. — Ela é igualzinha a Agnés Varda. — Disse espantado com a coincidência.

— Não é? — Pareceu orgulhosa. Um pequeno delay na hora de pensar. Percebeu o que havia acabado de acontecer. — Você assistiu os filmes dela? — Pareceu espantada. "Sim, ué, você gosta, eu fui atrás" deu os ombros. Em segredo havia amado os trabalhos da cineasta. Rubor. Uma expressão sem jeito. Fora do controle. Era assim que Cecil se sentiu naquele momento. Foi como um choque térmico sentimental. Ela nos encara, com uma vista apertada. "Você fica olhando pro nada assim, parece uma maluca" disse o barbudo sem entender nada, tentando procurar o que estivesse ali roubando a atenção da anfitriã. — Objeção! Não estou enlouquecida. Eles estão ali. — Bateu as mãos nervosamente. "Eles quem?" Parecia genuinamente tentar entender. — Apontou pra você. Antes que pudesse desenvolver seu ponto de vista, Catherine passou estreita próximo a porta e abriu ela por completo. Suspirou suspeita, explicando que deviam deixar aberta para arejar. Mães. Elas não fazem nada sem propósito.

*Grand-père: avó em francês. Palavras pontuais em parisiense, é do feitio de Cecil. Tão fina.

CINEMATIC | TOM KAULITZOnde histórias criam vida. Descubra agora