Quando amanhece, abro as janelas do meu quarto e deixo o restinho de ar fresco noturno entrar enquanto tiro meu vestido da Corte. Sinto-me totalmente acalorada. Minha pele parece me apertar e meu coração não quer desacelerar.
Eu já estive na Corte muitas vezes. Já testemunhei coisas muito piores do que asas sendo rasgadas ou insultos direcionados a mim. As fadas geralmente compensam sua incapacidade de mentir com uma panóplia de enganações e crueldades. Palavras distorcidas, pegadinhas, omissões, charadas, escândalos, isso sem mencionar as vinganças por lapsos antigos e mal lembrados. Tempestades são menos instáveis do que o povo fada, oceanos, menos inconstantes.
Como um militar, Madoc, por exemplo, necessita de derramamento de sangue assim como uma sereia precisa do jorro de água do mar. Depois de cada batalha, ele mergulha ritualmente seu capuz no sangue de seus inimigos. Eu já vi o tal capuz, guardado numa redoma de vidro no arsenal. O tecido está rígido e manchado de um marrom tão escuro que é quase preto, exceto por manchinhas verdes aqui e ali.
Às vezes eu desço e fico olhando para ele, tentando enxergar meus pais nas linhas de sangue seco. Quero sentir alguma coisa, algo além de um leve enjoo. Quero sentir mais, mas toda vez que olho, eu sinto menos.
Penso em ir ao arsenal agora, mas desisto. Em vez disso, fico parada na frente da janela, imaginando que sou uma cavaleira destemida, uma bruxa que escondeu o coração no dedo e o cortou fora.
— Estou tão cansada — digo em voz alta. — Tão cansada.
Fico sentada ali por um bom tempo, admirando o sol nascente dourar o céu, ouvindo as ondas baterem com a maré que desce, até que uma criatura voa e pousa na beirada de minha janela. À primeira vista, parece uma coruja, mas tem os olhos de um duende.
— Cansada do que, docinho? — pergunta a criatura.
Dou um suspiro e respondo com sinceridade pela primeira vez: — De ser impotente.
O duende observa meu rosto e sai voando na noite.
***
Durmo o dia inteiro e acordo desorientada, abrindo caminho pelas cortinas longas e bordadas em volta da minha cama. Tem baba seca em uma das minhas bochechas.
Encontro a tina de banho à minha espera, mas a água já está fria. Os servos devem ter vindo e ido embora. Eu entro e lavo o rosto mesmo assim. Quando se mora no Reino das Fadas, é impossível não reparar que todo mundo tem cheiro de verbena ou agulha de pinheiro esmagada, sangue seco ou asclepias. Eu fico com cheiro de suor e bafo azedo se não me lavar e me esfregar.
Quando Tatterfell vem acender os lampiões, ela me encontra me vestindo para a aula, que começa ao final da tarde e vai até altas horas da noite. Calço botas de couro cinza e visto uma túnica com o brasão de Madoc: uma adaga, uma lua crescente virada de lado, parecendo uma tigela, e uma única gota de sangue caindo de um canto, bordado em fio de seda.
No andar de baixo, encontro Taryn à mesa de banquete, sozinha, com uma xícara de chá de urtiga e beliscando um pão bannock. Hoje ela não sugere nenhum tipo de diversão.
Madoc insiste (talvez por culpa ou vergonha) que sejamos tratadas como filhos de feéricos. Que tenhamos as mesmas aulas, que recebamos as mesmas coisas que eles. Crianças humanas já foram enviadas para a Grande Corte antes, mas nenhuma foi criada como nobre.
Ele não entende como isso faz com que nos abominem.
Não que eu não seja grata. Eu gosto das aulas. Responder tudo certo é uma coisa que ninguém pode tirar de mim, mesmo que os professores ocasionalmente finjam o contrário. Aceito um aceno frustrado no lugar de um elogio efusivo. Aceito, e fico feliz porque quer dizer que consigo me encaixar, quer eles gostem ou não.