Capítulo Único

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N
a água, o sangue florescia.

Era esse exato pensamento que Ayato tinha toda vez que os respingos de chuva espalhavam, mais e mais, o sangue escuro daqueles corpos inúteis. Espadas cravadas na terra macia e peças de armadura com amarras desfeitas, tão imóveis quanto seus donos. Uma visão deveras calmante, a plenitude do silêncio perseguindo uma tranquilidade que parecia infindável durante o agora.

Estranho que Ayato estivesse tão acostumado aquela paisagem que sentisse o ímpeto, uma lufada de vontade de desperdiçar o resto de seu precioso entardecer vendo a maravilhosa palheta de cores, o vermelho pútrido proporcionado pelos membros decepados. Era pintura morta numa tela de natureza viva, sem nenhuma presença humana fora quem arquitetara meticulosamente cada elemento dali.

Hoje, a água seria sua cúmplice, uma velha amiga.

A água espalharia os resquícios líquidos do massacre.

A água iria tornar a lâmina de sua katana brilhosa outra vez.

Embora branco fosse uma de suas cores favoritas, principalmente para combinar às suas vestimentas, os serviços de Comissário não eram nada puros. Obscuros, algumas manobras não poderiam ser decididas através de uma simples reunião, assim como uma solução democrática para certos desrespeitos e indivíduos indesejados não poderia ser facilmente encontrada. Ainda que difícil de lidar — problemático e estranhamente corriqueiro —no fim, nenhuma quebra de regra seria poupada de uma morte silenciosa.

Ayato suspirou. Retornou sua arma à bainha e avaliou a situação ao redor dele. Suas roupas estavam perigosamente manchadas. Os corpos ao redor dele eram inúmeros, incontáveis sombras inanimadas que haviam desabado contra o orvalho fresco. Com o sol prestes a se esconder no horizonte, as árvores altas desenhavam contornos nas faces empalidecidas daquelas vítimas.

Mais tarde, como sempre, alguém lidaria com a bagunça por ele. Queimados ou enterrados, abutres seriam apenas abutres — línguas cortadas ao meio ou caladas pelo eterno silêncio — e eles tampouco causariam mais problemas aos seus negócios.

Era só mais do mesmo. Mais daquilo que sua irmã, Ayaka, nunca poderia saber ou imaginar.

Analisando o progresso uma última vez e reorganizando brevemente seus pensamentos, Ayato chutou a bochecha de um homem próximo a si que estivera babando em seu sapado. A chuva, que tinha começado com uma garoa cristalina, agora se intensificava em gotas que umedeciam os cabelos dele.

A água encharcou os fios, um por um, e só quando o céu escureceu de nuvens, anunciando também o início da noite, foi que Ayato saiu dali.


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Thoma o estava esperando. Como sempre.

Ele nunca se espantava, não perguntava nada. Nunca importaria quanto sangue estivesse nas roupas de Ayato, Thoma sempre o receberia com um sorriso gentil nos lábios. Aquele mesmo sorriso, bondoso e impecável. Satisfação esculpida em uma estátua bonita que era impermutável aos acontecimentos.

Ayato se perguntou quando foi que aquilo se tornara corriqueiro para ele. Se Thoma, com algum espanto, sabia exatamente qual foi o momento em que os ramos secretos do ócio de Ayato se tornaram tão naturais e comuns aos dois.

Em algum ponto, ele tem certeza, Ayato parou de se importar tanto com a perspectiva de estar sujando-o com suas mãos, massacrando a ingenuidade no coração dele com sua índole.

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