Milhas

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Na volta para casa do colégio e mais uma prova de recuperação concluída, pensava no dia que conheci Victor, exatamente no ponto aonde eu pegava ônibus todos os dias.

Primeiro, achei que ele morasse naquele bairro. Parecia mais um daquele lado: cabelo escondido atrás de um gorro e uma camisa de mangas curtas que ostentava a marca apenas por ter um simbólico minúsculo de uma ave aleatória. Me importava tanto com a cultura pop quanto em marcas da moda. Sendo assim, não sabia muito sobre quando custava a roupa que ele vestia, mas chutaria que era caro.

Lembrava de encarar seu par de tênis limpo demais e pensar "Ele definitivamente não é daqui". Ninguém que andava de ônibus e enfrentava as ruas esburacadas e cheias de lama — mesmo em dias de sol — tinha um par de tênis tão limpo quanto os dele.

— Você vem sempre aqui? — foi a primeira coisa que Victor perguntou para mim.

Eu vestia uma calça em tom jeans-claro-porque-foi-muito-lavada e uma camisa padrão, farda do colégio do Estado da Bahia. Colégio esse que estava logo atrás de mim. Eu era a única no ponto, porque não pegava os primeiros ônibus lotados para meu bairro.

Levantei minha cabeça e encarei os olhos dele. Em meu campo visual, vi dois meninos encostados em um carro e rindo. Os dois se pareciam com aquele à minha frente: cabelo arrumado, roupas passadas, tênis limpo.

— Isso é uma aposta idiota? — ralhei, desviando meus olhos do desconhecido e encarando os ônibus que passavam.

— Na verdade...

— Caí fora — o cortei.

— Eles vão me pagar cem reais se eu conseguir seu número.

— E eu com isso? — Não olhava para ele.

Meu pai — como era mais desconfiado que minha mãe — me mandava ter cuidado de meninos ricos. Meninos ricos de universidade podiam "batizar" minha bebida. Meninos ricos de colégio podiam ser usuários de droga, mas se a polícia nos parasse — mesmo eu sendo uma pobre garota branca —, eu iria para algum aglomerado de Menores Infratores e ele, o menino à minha frente, sairia de mãos dadas com seus pais para casa.

— Posso te dar cinquenta reais — ele falou e eu engoli em seco.

Cinquenta reais para ele não era nada, cinquenta reais para mim era o mês seguinte com o cartão estudantil com crédito para pagar meia passagem nos ônibus para o colégio.

— Não aceito dinheiro de estranhos — mas foi isso que eu respondi.

Minha eu de catorze anos era mais segura do que a minha eu de dezessete anos que parecia preste a desabar em lágrimas em um ônibus lotado.

— Você só precisa anotar um número aleatório aqui — a versão de Victor aos catorze ou quinze anos, falou me estendendo seu celular. — Eles vão ver você pegando em meu celular e eu volto pra lá.

— E aí, você some? — Virei meu rosto e olhei para o celular que ele estendia.

— E aí, eu volto quando eles forem e te entrego o dinheiro.

— Isso é uma pegadinha?

— Era uma aposta, na verdade. — Ele sorriu e eu olhei novamente para o celular.

tudo que eu faria por vocêOnde histórias criam vida. Descubra agora