Diziam

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— A importância de estrutura de uma redação é... — A professora de produção textual falava e eu tentava acompanhá-la, mas meu cérebro parecia mais lento que o normal.

Eu tinha ido para a recuperação. E para o colégio público que estudava recuperação significava mais um dia ou dois dias de aula antes de uma prova com vários assuntos e com o poder de decidir se você seria aprovado ou não. No meu caso, passar nas provas significava concluir o ensino médio, finalmente.

Eu já suponho que iria para o conselho de classe. Se os professores não me passassem, eu repetiria o terceiro ano. Maravilha.

— Você ainda faz isso? — Cristina, minha colega de turma, inclinou a sua cabeça para olhar as anotações que eu fazia em meu caderno.

— Isso o quê, desenhar?

— Desenhar para se distrair do mundo.

Sorri e como ela fazia, murmurei:

— Ainda acha que não estou usando drogas.

No fundo, a professora não nos via, mas eu tinha certeza que ela conseguiria nos ouvir se se esforçasse mais um pouco. Professores, às vezes, pareciam telepatas.

Eu gostava de todos os meus. Com exceção do professor de Matemática. Ele era muito rígido e mal-educado, mas, todos os outros professores sorriam amigavelmente e conversavam comigo. Após a morte de Victor e com a minha falta constante, quando eu retornei para o colégio, meus colegas se espantaram, porém apenas os professores fizeram o que eu queria que todos fizessem: acenaram e seguiram adiante.

Eles sabiam o que tinham acontecido. Todo mundo sabia, mas eu não precisava que ninguém me abraçasse ou chorasse comigo ou, ainda, falasse que tudo melhoraria. Eu não íntima de ninguém para aceitar — ou querer — reconforto, sendo assim, apenas um aceno e seguir adiante não me parecia insensível. Parecia-me perfeito.

No fim da aula, alguns professores acenaram para mim novamente. O professor de Geografia, o mais apático e distante dos alunos, sorriu e me disse, em um sussurro para nenhum outro aluno ouvir:

— Nós saramos disso.

Ele tinha perdido seu irmão caçula de vinte e poucos anos para um acidente de carro no ano anterior. Todo o colégio sabia porque ele se afastou por semanas e ficamos sem professor de Geografia por semanas. Quando retornou, ele parecia ter seguido em frente, mas havia um peso diferente em seu olhar.

Questionava-me se havia no meu também.

Eu até me sentia mais pesada. Levando em meu coração uma carga que eu nunca achei que sentiria.

Por tudo isso e um pouco mais, eu queria ser professora.

Também queria ser desenhista.

E ativista.

Mas me contentaria ao ser uma professora que desenhava e era ativista.

Balancei minha cabeça e voltei para a realidade a qual Cristina ria da minha piada e falava comigo:

— Parece que todo mundo agora é traficante, né?

Que garota aleatória. Mas entrei na conversa dela.

— Soube que Zeca morreu... — Zeca foi meu primeiro amor. O conheci na quarta série e o adorei. Nunca nos encostamos, mas nos conhecíamos por nome por sermos vizinhos de bairro. Enquanto ele crescia, eu sabia da vida dele.

Aos catorze, ele foi aviãozinho.

Aos quinze, matou pela primeira vez.

Aos dezesseis, levou um tiro da polícia e sobreviveu.

Aos dezessete, não sobreviveu.

Quando criança, Zeca parecia ter o futuro em suas mãos. Bonito, de um sorriso largo e voz harmoniosa. Poderia usar a lábia para ser vendedor legal, não de drogas.

— É, tem pouco mais de um mês. — Cristina balançou sua cabeça. Achava que Zeca e ela tinham tido algum caso na infância, mas, assim como eu, ela mais o viu crescer de longe do que se aproximou.

Para as pessoas de fora, todo o meu bairro era um chiqueiro. Afinal, todos nós éramos vistos como porcos. Misturados, éramos todos iguais. Pretos, brancos, pardos. Pobres.

Se uma bala perdida nos atingisse, o grito silencioso dos pensamentos preconceituosos também era igual. "Mas ele tinha algum envolvimento, né?!". Mesmo para quem não tinha. Mesmo quem era o mais honesto dos honestos.

Dentro do meu bairro, não tínhamos cara, nem cheiro. Tínhamos rótulos.

Pobres.

Periféricos.

Possíveis ladrões.

Mas, para os verdadeiros moradores, para nós, de dentro, éramos diferentes. Nós sabíamos quem era quem e quem não era. Quem era mais um Zeca e quem apenas o conhecia. Quem se envolvia. Quem era envolvido. E quem não devia nada a ninguém.

Conhecer Victor tinha me trazido uma brisa de ar fresco. Ele era de fora, mas me tratava como se eu fizesse parte de seu bairro nobre. Brincávamos da ironia.

Eu, branca e pobre. Ele o mestiço rico.

— Devíamos sair, qualquer dia desses — minha colega falou.

Encarei os olhos castanho-escuros dela e assenti.

— Deveríamos.

Sabia que nunca sairíamos. Meu "deveríamos" soava o mesmo que "vamos ver aí" ou, ainda melhor: vamos ver aí para o dia nenhum.

— Cristina e Beatriz! — a professora chamou a nossa atenção e eu sorri com os lábios franzidos, me desculpando.

Voltamos a aula porque a vida continuava. Diziam.


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