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Da janela do ônibus de onde eu estava para onde eu ia, eu inventava inúmeras possibilidades para os rostos e casas que eu via. Era quase como o filme Janela Indiscreta de Hitchcock, mas, uma versão gore ou contemporânea aonde os solavancos do veículo ao passar pelos buracos e a música — algo a ver com "senta" e "mexe a bunda" — de um dos passageiros que não usava fone de ouvido, se tornavam personagens secundários.
Suspirei ao inclinar a minha cabeça no batente caído do assento. Não era uma longa viagem do colégio para a minha casa, apenas uns vinte minutos e, em dias de trânsito, o dobro do tempo.
Hoje, parecia que duraria entre o rápido e o demorado, trinta minutos.
Nos mais recentes ônibus, motorista e cobrador ficavam próximos, em um acesso da porta de frente para a entrada quando a de trás era da saída, mas era claro que eu estava em um ônibus que ainda rodava, mas não deveria de tão velho e desatualizado. Quando o veículo parou no ponto, algumas pessoas entraram na convencional e antiquada entrada de trás, passando pelo cobrador e um rapaz de estatura média entrou pela frente.
Ele levantou seus braços e anunciou:
— Calma, isso não é um assalto! — Ele se apresentou, sendo de uma companhia de poesia ou poema ou os dois advinda do município vizinho: — Vou apenas recitar um poema para vocês escrito por mim.
Fechei meus olhos e massageei minhas têmporas. Agora, o passageiro que não usava fone de ouvido aumentou a sua música, era outra música, mas a base era a mesma: senta e rebola e senta de novo. Havia também quicar, uma forma menos educada de dizer para a mulher sentar. Misturando-se a isso, continuava os solavancos do ônibus e a voz do rapaz do poema falando sobre racismo e pobreza e outra série de coisas que eu não ouvia.
Victor Hugo ouviria. Não apenas porque ele ouvia todo mundo à sua volta, mas porque ele era do tipo protestante e ativista. Eu me interessava por muitos assuntos a ver com a desigualdade social e a educação — ou falta dela — no Brasil. Mas, tentava não mergulhar em mais problemas ou questões sociais... Apenas para não surtar. Victor dizia que precisávamos surtar para entender a importância de lutar. Eu, apenas não queria estressar mais a minha cabeça do que já me estressava.
Ele, diferente de mim, não precisava se preocupar com as dívidas de seus pais. E em ser um estudante-desempregado ou desempregado-estudante. E no vestibular. E se conseguiria passar em uma faculdade pública. Ou se teria que pagar uma particular. Mas como pagar? Cadê o trabalho? Cadê a estabilidade? Cadê os pais ricos?
Mas era claro que Victor não precisou ter os mesmos problemas que eu para, ainda assim, puxar o maldito gatilho.
E... Eu ia surtar. Mesmo ao tentar não pensar em problemas, eles pareciam me perseguir e...
— Cê sabe que vai fechar, né? — O rapaz que recitava o poema se sentou ao meu lado. Só vi quando abri meus olhos e percebi que ele realmente falava comigo.
— Quê? — Franzi meu cenho e entreabri mais do que necessário a minha boca.
Ele apontou para meu peito.
— O colégio. Vai fechar.
Tá, ele não apontou para meu peito, mas para a minha camisa.
— Não sei disso...
— Mas vai, passou no jornal.
— E jornal é confiável, por acaso?
Ele sorriu. Não deveria ser muito mais velho que eu, talvez uns dois ou três anos. Minha mãe diria, se o visse, que a beleza dele era como de um caboverdiano: tom de pele bastante escuro, mas uniforme; cabelo rente à cabeça; olhos castanho-claros e dentes absurdamente brancos e simétricos.
— É, você tem razão... — me respondeu. — Você não é aluna do terceiro ano? Os alunos do terceiro ano da tarde que estavam falando sobre o fechamento.
— Foi quando isso?
— Ontem.
— E por que o colégio fecharia?
— Sei lá, talvez porque é um colégio público em zona nobre? — O poeta arregalou uma sobrancelha e eu o encarei de volta, o desafiando.
— Não ouvi nada. — Apontei para a camisa. — E, como pode ver, estava hoje lá. — Dei de ombros. — De toda forma, sou da manhã e, tecnicamente, não mais do terceiro ano.
— Por quê, tem um quarto? — Ele queria implicar comigo, mas a verdade era que em um ou outro colégio, havia mesmo o quarto ano, que era voltado todo o ensino médio para um ensino técnico. Não era tão comum, principalmente para os colégios públicos, mas existia.
— Pra mim, não — respondi.
— E você não se importa?
— Que o colégio que eu praticamente já me formei, vai fechar?
— Sim...
Me importava. Se fosse verdade, me importava mesmo. Mas eu não queria me importar. Por alguns meses, gostaria de não me importar com nada.
— Não, não me importo — falei e ele acenou franzindo seus lábios. Provavelmente queria dizer alguma coisa para tentar mudar a minha opinião, mas sabia que eu era apenas uma desconhecida que não valia o seu tempo.
Talvez, se estivéssemos na internet, aquele desconhecido pseudopoeta seria o primeiro a me diminuir e me achar fútil por eu dizer não me importar. Mas, na vida real, ele apenas acenava e no próximo ponto, descia, indo embora e provavelmente desistindo de iniciar uma discussão.
Era melhor assim.
E por isso eu preferia o mundo real. Às vezes, era menos assustador que a internet.
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tudo que eu faria por você
Science FictionÉ mais um dia ou menos um dia de vida? Beatriz aceita a missão de voltar no passado e tentar evitar o suicídio de seu melhor amigo. Decisões. Amizades. Empatia. Abrace esta corrente e conheça este universo.