O velho ranzinza, a ave assustada e a criança flutuante

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Era uma manhã como qualquer outra que havia de ser no bairro da Vila dos Remédios, em São Paulo capital. Arnaldo acordava como sempre havia acordado em todas as manhãs, com dores intensas em seus joelhos e costas, pelejando para levantar da cama no auge de seus 56 anos, motivado apenas pelo gosto saboroso de suas dívidas que não se foram com a aposentadoria como ele esperava. Se alongou quando ficou de pé, assim como o ortopedista havia indicado, e seguiu para suas atividades matinais. Escovou os dentes, preparou com calma um café amargo, calçou seus sapatos apertados e foi em direção aos fundos da casa.

Antes de cruzar a porta do que um dia fora uma espaçosa garagem ele olhou para um quadro velho pendurado bem ao lado da entrada. Ele recordou com amargura os bons momentos com suas filhas enquanto esperava o ponteiro de seu relógio de pulso atingir as 8h como fazia em todas as manhãs. Destrancou-a e entrou no espaço escuro de sua velha loja procurando o cordão que pairava invisível logo à frente para acender as luzes do balcão.

Não demorou muito depois da abertura para que chegassem os clientes que desafortunavam o dia de Arnaldo, mas sua alegria era poder ouvir os pássaros cantarem assim que viam o sol, isso sim revigorava seu espírito cansado e fazia parecer que as dores que tinha em seu corpo eram mais leves tal qual quando era jovem. Quando menino sempre sonhou em criar aves, assim como seu velho pai, mas sua mãe não aprovava pois dizia que os bichos eram feitos para voar livremente na natureza. Apenas quando envelheceu pode construir sua pequena casa de pássaros na garagem caducada de sua casa mal cuidada. Na época houveram protestos de sua esposa, mas depois que a mesma partiu tudo o que lhe restava eram seus passarinhos que cantavam ao ver o sol, felizes em poder viver mais um dia. Alguns até cantavam quando viam Arnaldo sem saber da dor de sua vida miseravelmente amarga. Ele gostava da pureza dos bichos.

Enquanto estava sozinho na loja aproveitava seu tempo ouvindo o rádio e resolvendo caça-palavras, e sempre que tinha que se desconcentrar para algo além disso ficava aborrecido. Não precisava trabalhar assim. Ao menos era o que seria se não tivesse gastado muito de seu dinheiro com jogos, bebidas e principalmente mulheres. Dizia que era seu maior mal, "o pior mal do mundo", não à toa teve mais duas filhas fora de seu casamento que (pode dizer que eram legítimas) e mais algumas que nunca chegou a conhecer, por desgosto da parte de suas mães. Mas ele não fazia questão de ter certeza se eram ou não suas crianças.

"Tive um menino!" disse uma vez para Antonio, seu colega de muito tempo que possuía algum comércio ali perto "Mas a mãe era uma negra perdida e também não quis deixar que eu visse a criança. Era casada então jogou a culpa no marido que fora descuidado, mas eu sabia que era meu. Tinha os meus olhos quando o vi, nada lembrava o rapaz."

"Para onde foram" perguntou Antônio ao companheiro, na época.

"Para longe! Para o nordeste. Paguei para que fosse. Se continuasse aqui me traria problemas, mais do que eu já tinha, então deixei que criasse o garoto longe daqui."

"Pois bem!" disse Antônio decepcionado "E que fim levou o menino?"

"Última vez que soube, foi em 97. Ele veio aqui para morar com a mãe da moça, sequer sabia que tinha parente por aqui. Cilene me mandou uma carta contando tudo, ficou sabendo graças ao puro acaso de conhecer uma amiga que mexia com certidões, e até se ofereceu para buscar o garoto e lhe contar que tinha um pai aqui, mas não achei que valeria a pena. Desde então não sei que fim levou, apenas que voltou para Pernambuco. Talvez tenha crescido e tenha uma família, ou esteja se embriagando em um bar. É difícil de dizer"

A Saga HOPE - Livro 1Onde histórias criam vida. Descubra agora