Quando olho no relógio de pulso, mal posso acreditar que estou quase chegando. De acordo com meus cálculos, faltava por volta de 20 minutos. O trêm levava no mínimo 16 horas de São Paulo até minha cidade. E ainda era preciso completar a viagem de charrete do centro da cidade até a zona rural, que durava uns 30 minutos. Eu estava bastante cansado, mas se pudesse eu enfrentaria mais 16 horas de volta a São Paulo só para fugir do reencontro com meu pai e o meu casamento arranjado. Não que eu fosse ingrato, pois sabia muito bem que se ele não estivesse pagando o meu curso de Administração eu nunca teria saído da zona rural e vivido tudo que eu tinha feito em São Paulo, como: minha formação, festas, rapazes e curtição. O problema era que ele, o senhor Jorge Campbell Fenderson , era um senhor de 58 anos, descendente de escoceseses e dono de uma boa fortuna vindo dos meus avós. Ele era um homem extremamente rude e peverso. Quantas vezes eu já havia presenciado ele tratando mal os funcionários da fazenda, humilhando minha mãe pelo simples fato de ser mulher ou até mesmo atirando em pessoas que ousavam roubar algum fruto no seu pomar.
Uma vez quando eu tinha 17 anos uma família de andarilhos composta por 3 crianças, um idosa e uma mulher havia invadido o terreno para pegar umas goiabas que já estavam quase podres de tão maduras no pé, e meu pai ao ver tão situação pegou sua espingarda e começou a atirar para o alto praguejando. A maior parte do grupo saiu correndo assustados, porém um menino de no máximo 6 anos estava pendurado em um dos galhos e acabou caindo com o susto. Eu e minha mãe que estávamos voltando de uma missa corremos assustados para a porteira ao ouvir os disparos bem a tempo de ver uma cena terrível: meu pai apontado uma espingarda para uma criança que era tão magrinha que era possível até ver os osos de sua costela. O menino estava aos prantos e tentava inutilmente levantar. A mulher que deveria ser sua mãe gritava desesperada por misericórdia enquanto era segurada pelos braços pela senhora.- Seus pais não te deram educação moleque filho da puta? Pelo jeito só te ensinaram a roubar mesmo. - ele gritou enquanto engatilhava a arma. Ao ver tal cena eu corri e me coloquei na frente da espingarda gritando:
-Pai, pelo amor de Deus. É só uma criança com fome, não faça isso. - ele só me olhou com desprezo e disse:
- Sai da frente, Manoel ou quem vai levar uma surra vai ser ocê. Essas crianças de hoje em dia tem que aprender a trabalhar desde cedo ao invés de ficarem vagabundeando por aí. Eu mesmo com essa idade já ajudava meu pai aqui na fazenda.- A diferença é que você sempre foi um herdeiro. Quando nasceu meus avós já tinham essas terras e estabilidade financeira. E nós bem sabemos que sua "ajuda" era humilhar os empregados e atrapalhar o serviço deles. Ambos sabemos que não é a mesma coisa. Como você ousa se comparar com alguém que passa fome? - eu disse jogando na cara dele algo que eu odiei escutar quando ele resolveu reviver o passado durante um jantar. Ao escutar tal resposta seus olhos se arregalaram enquanto seu rosto ficava vermelho de ódio. Então ele virou a coronha da espingarda e a bateu com toda força na minha boca. A dor foi tão grande que cai de joelhos no chão enquanto o sangue escorria e eu cuspia pra fora dois dentes. Ele ao ver que estava caído me chutou na costela enquanto gritava:
-Isso é procê aprender a respeitar quem te sustenta, seu merdinha. Sem mim você não seria nada. - ele disse enquanto minha mãe gritava e corria pro meu lado pedindo para ele parar. Ele riu enquanto gritava que eu era um moleque mimado, mas logo fechou a cara e voltou a apontar a espingarda pro menino.
-E isso é procê aprender que ladrão bom é ladrão morto. - ele disse disparando três tiros no peito da criança. E sem nenhum remorso a pegou já sem vida pelos braços e a jogou para perto da família dele, apontando a arma e mandando eles saírem rápido antes que ele matasse todos. Depois mandou minha mãe me recolher e tratar de fazer um curativo no filinho da mamãe. Logo após a situação toda ele que já era rude se tornou mais ainda. Não houve nenhuma investigação policial sobre o caso. Quem investigaria um fazendeiro rico sobre a morte de uma criança pobre? Por mais absurdo que fosse a resposta era que ninguém faria nada. Ele dormia tranquilo e mal quis saber quantos e quais dentes eu havia perdido ou se eu havia fraturado algo (que graças a Deus eu não tinha e havia perdido apenas os dois últimos dentes da arcada) só dizia todos os dias que aos 18 anos ele me mandaria para capital para estudar Administração, assim eu poderia cuidar das terras no futuro. Completando que quando estivesse faltando um ano pra minha formatura eu pediria a mão da Maria Júlia e me casaria assim que formasse. Na época eu não discuti, aceitei calado pois mal podia esperar para ir pra bem longe dele, nem que fosse de forma temporária.
Por isso não era de se espantar o fato de eu não querer revê-lo. Enquanto divagava não vi o tempo passar e logo cheguei na estação. Pela janela vi que minha mãe estava me esperando sem ele, agradeci mentalmente por isso. Reparei que ela mesmo com seus 45 anos estava envelhecendo muito rápido, e meu Deus como eu amava aquela mulher, me doía saber o quanto ela aguentava calada desde que se casou aos 15 anos os insultos do meu pai. Peguei minha maleta e suspirei fundo enquanto saia do trêm.
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Desejo Rural
RomanceNa década de 50, Emanoel é filho de um grande fazendeiro que se vê forçado por seu pai a se casar com a filha de outro grande produtor. O que o pai de Emnaoel não sabe é que seu filho é gay e ao conhecer o novo capataz da família, eles se envolvem e...