- OK, vamos lá! - disse no meio de um longo suspiro enquanto calçava os sapatos com dificuldade - Eu escrevo. Sou escritor. Além de médico, tenho um livro de contos publicado. Já ganhei prêmio por isso.
- Esse é o seu segredo, doutor Jeckyll?
- Nunca disse isso a paciente nenhum. Considere um privilégio. Mas não, esse não é o meu segredo.
Ela o fitou.
- Eu, assim como você, também me trato. Faço terapia uma vez por semana. Não porque é aconselhável que psiquiatras façam terapia, mas porque sofri uma grande perda. Por causa disso, parei de clinicar por 6 meses. E, se não acredita que tratamentos psiquiátricos podem ajudar a mais desesperançosa criatura, bom, tenho que lhe dizer que tu estás falando com um fantasma porque eu já deveria ter morrido há quatro anos.
Ricardo começava a conseguir, senão a confiança de Elisa, pelo menos, sua total e irrestrita atenção.
"Há quatro anos eu atendi uma paciente. Ela era jovem, tinha uns 25 anos. Lembro do dia em que entrou no meu consultório. Era a última da tarde. Eu estava cansado, mas precisava atendê-la. Fiz a entrevista padrão e começamos um plano terapêutico.
- Se não quiser falar a respeito, não precisa.
- Você não quer mais ouvir? - perguntou ele em um tom carregado de sarcasmo.
- Quero, claro que quero. Sou jornalista. Histórias me interessam. Mas você parece resistir ao me contar.
- Decidi fazer isso e vou fazer. Pode ser um erro que custe o meu registro no Conselho Regional de Medicina, mas não quero voltar atrás - mais um longo suspiro - ela ia ao meu consultório duas vezes por mês. Era uma pessoa interessante. Falava pouco e sempre escolhia os últimos horários para se consultar. Isso dificultava a minha compreensão. As consultas eram de apenas 30 minutos e eu estava sempre muito, mas muito cansado. Porém a atendia com atenção. A fazia se sentir bem. Pelo menos tentava. Comecei a receitar medicamentos e indiquei psicoterapia, mas ela não podia pagar por mais esse tratamento. Então aumentei o tempo de suas consultas para 45 minutos. Estivemos em tratamento por quatro meses. Até que ela não veio em uma consulta. Eu tomei aquela falta como uma falta normal, de uma paciente normal. Eu deveria ter desconfiado que...
- Você não poderia saber. Ninguém pode.
- Mas, Elisa, eu poderia. Na verdade, deveria... - uma longa pausa que a curiosidade de Elisa não ousaria quebrar - Uma semana depois um senhor, de uns 60 anos, estava a minha espera na recepção do meu consultório. Junto com ele, um menino de uns 10. Quando cheguei perto da porta ele perguntou:
- Doutor Ricardo?
- Sim. Sou eu.
- Posso falar dois minutos com o senhor?
- É paciente novo?
- Não. Sou o pai da... - e tirou uma foto da paciente do bolso.
- Maria Clara. Ela está bem?
"Os olhos do velho ficaram marejados ao ponto de desaguar sobre a pele enrugada do rosto do homem. Lembro que naquele momento recebi um soco imaginário no estômago o qual me tirou o ar por alguns instantes. Por razões de ética, de moral, de humanidade eu me senti culpado. Extremamente culpado.
"Lembro daquele senhor, emocionado, me entregando um envelope fechado com meu nome no lugar do destinatário e o nome dela como remetente.
"Olhei para minha secretária e perguntei pelo próximo paciente. Ela disse que haveria um em dez minutos. Então pedi para que ele e o garotinho entrassem.
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