Para Ricardo, a pior contrapartida em ser psiquiatra era a falta de domínio sobre os próprios compromissos. Algo que, se como médico ainda não havia se acostumado, como pessoa, já deveria. Afinal, nasceu na noite de ano novo, 15 dias antes da previsão do obstetra. Quase que de improviso.
Não ter ido ao show não entraria para a lista dos ressentimentos. Pra ser honesto, ele não fazia nenhuma questão de estar lá. A vida já foi menos justa quando o fez perder um jantar de Natal em um hotel-fazenda por conta de uma tentativa de suicídio de um paciente.
Já eram tantas experiências que, de antemão já sabia: quando o telefone toca nunca, de maneira alguma, é algo bom. "Se fosse boa coisa falariam pessoalmente". E de fato todas as experiências que tivera serviram para comprovar a sua teoria.
As pessoas exageram situações. As pintam muito mais sensacionais para prender a nossa atenção. A disputada atenção de um médico. De uma situação ruim, fazem um bom filme com um bom roteiro e uma boa direção. Não sabem a diferença entre urgência e emergência, prioridade de acontecimentos cotidiano. Nós, médicos, somos vítimas, na maioria das vezes, do nosso próprio status. Queremos nos colocar diante da sociedade como cópias rotas de Deus e, quando nos pedem para estarmos em toda parte, resolver os problemas de todos, achamos ruim. Embora finjamos que aceitamos naturalmente o nosso ofício, ao que alguns de nós chamam de "missão".
As pessoas tentam, a todo custo, se conectar a nós, afinal, invadimos seus anseios, violamos seus corpos, curamos suas dores e sumimos de suas vidas. Todas nos chamam de "meu médico" mas não somos de ninguém. Não pertencemos a ninguém, nem a nós mesmos. Fingimos que a relação paciente e profissional existe, mas, a verdade é que, nós médicos, não queremos perder o status de deus. Queremos curar sem amar. É o nosso ofício.
Quando as pessoas nos ligam para relatar uma emergência pedem desculpas, mas, na verdade, se sentem felizes por achar que estão conectadas ao deus que fica atrás da mesa. Nos têm além do consultório. Se sentem íntimas, nossos donos. A nossa missão.
A mente de Ricardo tentava achar sentido em ir à clínica em plena quarta-feira à noite. Prometeu pra si mesmo que ligaria o foda-se. Resolveria o que tivesse que resolver de maneira rápida e voltaria para casa a tempo de assistir o último episódio de O Demolidor antes de dormir.
Ao chegar na clínica o indiferente foda-se deu lugar à angústia. Sentiu medo. Havia sangue por toda parte. Os móveis brancos, comprados depois da reforma na recepção, exibiam respingos marrom e marcas de desespero misturadas ao cheiro inconfundível de dor.
A medida em que avançava pelo corredor vazio sentia estar mais perto do centro da situação que o levou até lá. Ao longe, gritos raivosos de um homem fora de controle. Ao apontar na porta da sala viu Jorge, seu paciente, cercado a uma distância respeitável de todos os funcionários da casa, cinco policiais e dois ou três pacientes curiosos.
A enfermeira mais velha do local, ao vê-lo, veio a seu encontro com as mãos em súplica.
- Graças a Deus o senhor chegou!
Em uma situação normal teria ficado irritado com a frase já que era ateu e odiava ser chamado de "senhor". Mas aquilo não era uma situação normal. Caso fosse, as roupas imaculadas da equipe de enfermagem não estariam sujas de sangue e de uma substância que não conseguia identificar.
Continuou parado.
Jorge urrava e transformava o medo dos policiais em gritos despreparados de autoridade.
-Te acalma! Pensa que tá lidando com quem?! - gritou o policial mais baixo de todos.
Ricardo continuava imóvel. A observação lhe dava elementos para tentar entender o que, aos prantos, a velha enfermeira tentava explicar: o vidro quebrado e o sangue escorrendo nos restos de cacos. A mão ensanguentada do profundo corte no antebraço de Jorge. O rastro de sangue desordenado e as roupas sujas. Os olhos vidrados de Jorge e o medo dos policiais. O grande pedaço de vidro quebrado em uma das mãos.
Era hora de acabar com o espetáculo e mostrar porque ele era, dos presentes, o mais bem remunerado. Sem alterar o tom de voz, alheio a Jorge, cumprimentou os policiais e pediu para que se retirassem.
- Se formos, não poderemos garantir a sua segurança, doutor, e nem das pessoas aqui.
- Eu sei - disse sem perder a falsa calma que sentia - Não vou precisar de segurança.
Tenho que ser firme.
Os policiais foram se afastando, assim como a enfermeira e os técnicos de enfermagem.
Tenho que ser firme.
- Ninguém no corredor! - ordenou.
Do quarto, Elisa ouviu a ordem. Nem respirava para que o som da respiração não a impedisse de ouvir o que acontecia na sala de televisão.
Silêncio.
Um estrondo. Uma luta corporal.
Silêncio novamente.
Elisa não conseguia segurar a ansiedade e contrariando a ordem, caminhou como se não tocasse o chão, sem fazer barulho. Sua discrição passou despercebida por Jorge, mas não pelo médico que fez um sinal com os olhos para ela cair fora.
Se escondeu na parede do corredor onde ficou por quase uma hora, sentada no chão.
Por quase UMA HORA.
- Frio para ficar aqui.
O susto a fez arregalar os grandes olhos azuis e arremessar o corpo contra a parede em um pulo. Ricardo sorriu. Exausto sentou ao lado dela sem falar nada. Arrumou o óculos e, sem querer, expôs a mão suja do sangue de Jorge.
- O que ele tinha?
- Estava em surto. Agressivo.
- E o sangue?
Ricardo suspirou fundo. Não queria conversar. Não depois de saber que parte do sangue espalhado era do técnico de enfermagem mais inexperiente da equipe. Jorge quebrara a janela numa tentativa desesperada de fuga e, com um dos cacos, feriu gravemente o negro magrinho de óculos que, pela primeira vez, trabalhava na profissão na qual passou anos estudando.
Levantou e, só de imaginar a cena do pobre sendo retalhado pela fúria do homem, sentiu tontura. A vulnerabilidade do médico a excitou. Pela primeira vez o viu como alguém frágil e, ao mesmo tempo, viril. Elisa fez menção de ajudar mas, instintivamente, Ricardo se afastou.
- Vá para o seu quarto. Tenho que resolver as coisas por aqui. Amanhã teremos um dia cheio.
Elisa obedeceu. Saiu sem se despedir. Apenas foi para o quarto, fechou a porta e ficou sentada, como um índio, sobre a cama, apenas reavivando a imagem daquele homem na sua mente, reacendendo e prolongando o desejo que sentira.
Parado no meio do corredor, Ricardo respirava fundo na esperança de expulsar o que sentira, involuntariamente, por alguns segundos. Elisa.
- O diretor da clínica quer falar com o senhor, doutor. Está ao telefone. - a velha não iria o deixar em paz naquela noite.
Sem falar se dirigiu até o telefone para dar explicações do que aconteceu. O surto era a prova da falha na medicação. "Erros acontecem. Mas esse, admito, quase custou a vida de um funcionário..." A afirmação, embora compreendida pelo diretor, não o deixou dormir naquela noite.
De volta a sua casa, da sacada do quarto, observava a luz da lua bater nos lençóis brancos que cobria delicadamente o contorno do corpo de Laura. Sentou de frente para aquela cena, e acendeu um baseado. Sua cabeça construía um mosaico de problemas: Laura. Jorge. O diretor. Elisa.
E todo resto sumiu de seus pensamentos. Restou apenas Elisa.
- Elisa - disse em voz alta - Elisa.
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