Nothing Breaks Like a Heart

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Por mais de seis mil anos, Crowley duvidou. Por mais de seis mil anos, Crowley se questionou se era capaz de amar. Ele, um demônio, Tentador Original, Serpente do Éden, Criador do Pecado, capaz de amar? Ainda mais um ser tão puro, imaculado, que irradiava luz pelos poros como Aziraphale, seu anjo. Ele duvidava que sequer possuísse um coração, ele era um demônio, de que lhe serviria um coração se ele não era capaz de amar? 

Não, ele não achava que tinha um coração, pelo menos não no sentido figurado da palavra. Ele sabia que sua corporação humana ostentava aquele órgão, sabia onde ele se encontrava — apoiado sobre o diafragma e situado sob o esterno, no interior do mediastino e entre os dois pulmões. 

Crowley nunca havia parado para procurar seu coração, para sondar de onde vinham aquelas sensações tão inusuais, tão novas e desconhecidas que ele vinha cultivando desde o encontro com um belo Principado no Éden. Ele nunca se preocupou em investigar o porquê um demônio sentia coisas tão boas, na verdade, ele não queria saber, ele era um demônio, havia sido despojado de toda sua graça, de tudo que era bom, não queria perder também esses sentimentos que aqueciam seu peito e suavizavam as dores fantasmas que ainda afligiam sua essência. 

E mais uma vez em sua longa existência, Crowley havia falhado. Mais uma vez, ele falhou em perceber seu erro antes que fosse tarde demais. 

Quando ele ouviu aquelas palavras dos lábios de Aziraphale, ele sabia que havia sido condenado a cair mais uma vez. E ah, aqueles lábios, lábios que ele passou milênios desejando, apreciando, ansiando por ser o sortudo que poderia prová-los, senti-los e tocá-los, lábios esses que ele conseguiu provar, sentir e tocar, mesmo que por ínfimos e preciosos segundos, lábios que eram sua benção, recitando poesias épicas, trechos de peças Shakespearianas e versículos bíblicos, lhe cantando elogios e dizendo o quão gentil ele era, por mais que odiasse ouvir isso, lábios esses que eram sua maldição, sua queda, tentando-o com seu belo formato e cor rosada, matando-o um pouco a cada palavra maldosa que lhe dirigiam. 

"Estamos apenas confraternizando." 

"Você vai rápido demais pra mim, Crowley." 

"Eu nem mesmo gosto de você." 

"Vocês são os malvados." 

"Eu perdoo você." 

Crowley não tinha ideia do que vinha acontecendo dentro de si, de como seu coração demoníaco ganhava uma nova rachadura a cada dia. Mas ele sentiu seu coração pela primeira vez quando o anjo proferiu aquelas palavras, "Eu perdoo você". Ele sentiu as rachaduras cedendo, o vidro se estilhaçando dentro de seu peito. Ele sentiu os cacos perfurando seus pulmões, os enchendo de sangue, ele sentiu que estava prestes a se afogar no próprio sangue, na própria agonia e angústia, quando assistiu por trás dos óculos escuros enquanto Aziraphale seguia Metatron até aquele elevador. 

E ele sentiu pela última vez, quando aqueles estilhaços que lhe sufocavam, que estavam obstruindo sua garganta, desapareceram quando ele viu a porta do elevador se fechar. Ele sentiu os fragmentos de seu coração acompanhando aquele a quem pertenciam, deixando um espaço oco no peito do demônio. 

Ele havia caído novamente e estava se afogando em algo pior do que seu próprio sangue, algo que queimava mais do que enxofre fervente, algo que poderia machucá-lo muito mais do que água benta. Crowley estava se afogando em uma profunda piscina de seu próprio amor pelo anjo, amor que havia sido recusado e descartado sobre ele como óleo fervente sendo derramado das muralhas de um castelo durante uma batalha. Crowley agora era três vezes caído, três vezes desgraçado e três vezes amaldiçoado. Ele sempre seria um demônio e sempre seria lembrado e tratado como um. 

E, porra, aquela não foi a primeira e nem a segunda vez que Aziraphale havia rejeitado-o. Na verdade, o anjo tinha tendência a recebê-lo com palavras cruéis sempre que Crowley decidia demonstrar afeto demais por ele. Ele já estava acostumado a ser rejeitado, estava acostumado a ouvir de Aziraphale que eles não eram amigos, que estavam apenas confraternizando, que eram inimigos hereditários. Ouvir aquelas frases repetidas vezes machucava? Claro que sim, doía saber que ele não passava de um demônio para aquele que amava, mas ele havia se acostumado, aprendido a ignorar a dor da rejeição. 

Mas ele era um demônio e estava acostumado a sentir dor, ele havia percorrido toda a extensão do Inferno, sentido o calor do fogo infernal, havia sido torturado pelos demônios mais sádicos existentes apenas por evitar o suicídio de uma jovem. Ele poderia suportar o abandono, poderia suportar seu coração estilhaçado, ele iria suportar a rejeição da única pessoa que amou em toda sua existência. Porque, se ele não pudesse suportar aquilo, Crowley não sabia o que seria de sua existência já miserável.

O coração de Crowley sempre pertenceu ao anjo, sempre. Por mais de seis mil anos, mesmo sem saber, Aziraphale teve o coração de um demônio nas mãos. Crowley se apaixonou pelo anjo no momento em que soube que ele havia entregado sua espada flamejante aos humanos. Crowley sentiu como se estivesse em queda livre do Céu novamente no momento em que foi protegido da primeira chuva pelas asas de Aziraphale, ele sentiu a adrenalina que vinha com a queda, só que daquela vez ele pensou que não iria cair no chão, pensou que o anjo estaria lá para pegá-lo antes que atingisse o chão. 

Naquele dia, Crowley entregou o coração que nem sabia ter nas mãos de Aziraphale e não pediu nada em troca. Tudo que o demônio desejava era ser aceito do jeito que era e, se fosse digno, amado pelo anjo. E de alguma maneira, Aziraphale sempre o aceitou, nunca se importou de que ele fosse um demônio, em nenhum momento desejou que ele fosse algo além do que já era. Crowley sabia que, de algum modo, Aziraphale o amava, fosse platônica ou romanticamente, ele não se importava, aceitaria o que quer que o anjo decidisse oferecer. 

Crowley não era um tolo, não importa o que os outros demônios dissessem. Ele sabia que seis mil anos de convivência, de amizade, não eram seis anos. Eles tinham uma conexão que ninguém mais possuía, se conheciam como ninguém mais conhecia. Mas aquela última conversa fazia Crowley questionar sobre o que sabia sobre o anjo e seus sentimentos, seus anseios, suas convicções. 

Ele sempre gostou de questionar e isso sempre foi sua ruína. Mas o fogo do Inferno não queimava tanto quanto sua curiosidade. Então, ele continuaria questionando, remoendo cada palavra, cada expressão, cada olhar, toque, continuaria remoendo aquele beijo. Ele continuaria até que sua curiosidade fosse quente demais, até mesmo para ele. 

O demônio se arrastou para fora dos lençóis de seda que cobriam sua cama, ele sentiu todos os pelos de seu corpo se arrepiarem ao primeiro contato de seus pés com o piso gélido. Ele seguiu até o banheiro, abriu a torneira e apoiou as mãos na bancada da pia enquanto observava a água corrente. Ele levou as mãos em concha até a água, jogou um pouco no rosto e no cabelo, suspirou e levantou a cabeça, olhando-se no espelho. 

Olhando de volta para ele, estava um rosto com o início de uma barba, seu cabelo ruivo havia voltado à cor natural e estava completamente bagunçado, apontando em todas as direções possíveis. Seu rosto estava pálido e havia olheiras abaixo de seus olhos amarelos serpentinos que se encontravam inchados e avermelhados. Ele parecia um morto-vivo. 

Crowley pegou seus óculos escuros da bancada da pia e os colocou no rosto, escondendo aquele par de olhos demoníacos. Ele não poderia deixar que vissem o quão quebrado estava, mesmo que não houvesse ninguém por perto para ver.

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