Capítulo 3 - A Viajante

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Capítulo 3 - A Viajante

Caio de encontro ao chão. Meu ombro esquerdo latejava após bater contra algo grande e áspero, estranhamente cheirando a pólvora. Estava tudo escuro, com exceção de um único ponto brilhante, mas não sabia se era seguro me aproximar com o chão tão instável como estava, parecendo balançar pro lado e para o outro.

Esbarro em algo gelado e o ouço se quebrar ao cair, quase imperceptível no meio de tantos rangidos e chiados.
Onde eu estava? Não devia ter algum almoxarifado passando por uma espécie de terremoto na biblioteca...

Sim, senhor! — Soa uma voz masculina, abafada pelo teto.

De imediato, algum tipo de ferrolho é aberto e a claridade invade meus olhos.

— O quê...? — Diz a voz.

Não consigo me manter de pé por muito tempo, apenas até cair diante de uma escada que subia para onde a luz vinha. Passos distantes se aproxivam quando olhei para cima, vendo duas silhuetas na frente de um alçapão no degrau mais alto.

— Venha ver isso aqui.

— Por favor... Podem me ajudar? — Digo, sentindo o chão me impulsionar para cima e para baixo.

Eles começam a descer os degraus em passos rápidos. Caio para trás, tentando me afastar de suas mãos, mas sou erguida pelos dois e empurrada ao encontro de uma bagunça de vozes lá fora, saindo pelo portal no teto.

Sinto colocarem um pano fedorento em minha boca, logo antes de poder ver o cenário à minha frente.
Aquilo era... um navio? Um navio gigantesco.

O deque estava lotado, muitos homens paravam o que faziam para me encarar, alguns davam sorrisos macabros e, mesmo à distância, imundos. As roulas deles... podia me atentar ao quão encardidas estavam se não fosse pela aparência estranha delas. Nunca tinha visto algo assim antes. Muitas camadas de tecido preto e marrom, adereços completamente desconfortáveis e... espadas e pistolas por todo o corpo.

Observo alguns barris rolando pelo chão e pedaços de carne apodrecendo ao ar livre.
Sinto meu estômago embrulhar, por consequência do enjoo marítimo, mas muito mais por imaginar o possível destino que eu iria ter se continuasse ali.

Um dos homens me solta para pegar um rolo de corda. Olho para o brutamontes que me segurava, seus dedos enrolavam uma mecha fina do meu cabelo. Sem pensar muito, piso forte em sua bota de couro e fujo em direção à borda do deque. Com certeza ficar flutuando em alto mar era mais convidativo do que permanecer ali.

Corro, meus músculos doendo a cada passo, mas alguém cruza meu caminho antes que eu pudesse saltar.

— Não seja precipitada, bonitinha. — Diz o estranho à minha frente, a barba e os cabelos meio grisalhos. Vestia um roupão de banho, talvez tinha acabado de sair de um.

Tiro aquele trapo nojento da minha boca.

— Me deixe ir embora, por favor.

— Para morrer? Não afogamos garotinhas. — Ele ri, desencadeando uma série de risos da tripulação, mas logo me encara com desconfiança. — Como fez para entrar no meu navio?

Poderia dizer que não sabia? Eu provavelmente tinha batido a cabeça tão forte ao ponto de estar alucinando. Mas aquele cheiro... o odor que entrava rasgando minhas narinas era real demais.

— Eu... — Pensa! — Eu fui sequestrada! Me doparam e me colocaram... ali embaixo. — Viro-me para o alçapão, alguma coisa me diz que é pra lá que irei voltar.

Ele me olha com os olhos cerrados. Fui descoberta? Talvez fosse só o sol machucando seus olhos.

— P-por favor, senhor...

— Capitão Tillo Bukans.— Diz claramente.

— Capitão Bukans, eu te juro que falo a verdade. — Digo, sentindo uma gota de suor escorrendo pela têmpora.

— Bom — Vejo-o cuspir no deque. — Não seria a primeira vez. — Ele ronda meu corpo. Observo seu rosto coberto por cicatrizes, algumas até se extendiam para o pescoço. Que tipo de pessoa as teria ganhado? — Talvez possamos te deixar na próxima ilha, senhorita...?

— Lorina! Muito obrigada.

— Que isso, minha jovem. — Ele diz, estendendo sua mão. — Não somos sujeitos de má fé, como deve parecer...

Sou conduzida à uma parte elevada do deque. Algumas crianças brincavam com cartas estranhas, uma menininha de pele escura e vestido rodado as distribuía para os outros. Achei ter visto algo em seu rosto logo antes do capitão Tillo puxar meu braço. — Mas eu especialmente não gosto de mentirosos. — Ele faz um sinal e algo cobre meus olhos.


Minhas mãos estavam atadas em cordas absurdamente apertadas. Puseram-me sentada numa sala silenciosa e com o cheiro menos pior do que a anterior, mais uma vez sem poder enxergar. Acho que podia me considerar sortuda.
Devem ter se passado horas, tanto que o balançar do navio já estava me enlouquecendo, mas, então, um barulho diferente soou. Sons de canhão vinham de todas as direções, até que a porta da sala é aberta.

Alguém parecia caminhar até mim. Meu corpo tremia, nunca tinha estado tão vulnerável.

— Olá? — Digo.

Shhh. — Diz uma pessoa de voz fina antes de tapar minha boca. — Eles não sabem que eu vim aqui. Vou tirar sua venda, tá bom? Só não fale muito alto. — Concordo com a cabeça.

A ação me revela a menininha das cartas, agora totalmente de frente pra mim. Haviam marcas estranhas percorrendo seu rosto, como cipós ou folhas crescendo por debaixo da pele no lugar das veias.

— O que que...

— O quê? Ah, isso? Você parece surpresa. — Ela ri, passando os dedos pelas cicatrizes. Seriam cicatrizes? — Então o que eu ouvi o capitão Tillo falando é verdade.

Os canhões param de repente, fazendo-a se levantar num salto e olhar para a porta recém-fechada. O capitão estava parado no meio da sala, seu rosto escorria e pingava sangue no soalho. Que imagem horrível.

— Sua esquilinha enxerida. — Diz ele, olhando para ela enquanto se dirigia à um balde de água posto no chão.

Vejo-o lavar o rosto e se sentar diante de mim, ofegante.

— Pegue aquilo. — Ele diz à garota, apontando para algo onde eu não conseguia enxergar.

Logo ela aparece arrastando a mochila de Liam. Tinha me esquecido completamente dela...

— Quando eu vi você, senhorita Lorina, usando essas roupas estranhas... já soube que não era desse reino. — Ele para ao olhar no interior da mochila, erguendo um gravador de voz.  — Mas não esperava que fosse uma viajante.

Obrigada por lerem! ♥︎

A Viajante & o Príncipe RegenteOnde histórias criam vida. Descubra agora