Capítulo 1: Em Que Dois Deuses Compartilham um Palco

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Mesmo o mais incompetente dos atores pode confirmar: na hora do espetáculo, o que existe é o palco. E tudo o que havia naquele momento era o palco e nada mais. Ou pelo menos era assim que pensava Xianggong ao adentrar aquele espaço.

"Saudações aos que me ouvem, pois me sinto honrado pela sua nobre presença." A voz rouca não parecia sentir o peso das rugas e costas curvas do deus que as pronunciava. As mãos que mais pareciam raízes seguravam uma bengala mais por capricho do que por necessidade. "Hoje, lhes trago o distinto conto de Koichi Takamura, distinto dentre os mortais, o homem conhecido como o Dragão de Himura-"

"Pode parar aí mesmo, velhote." A voz feminina e jovial vinha de fora do palco, e assustou por um breve momento o próprio Xianggong. Não só pela inesperada e rude interrupção. O tom nas palavras era de audácia e soberba. "Esta história não é de sua alçada. É da minha."

A jovem que adentrou o espaço de Xianggong contrastava com o antigo deus em todo aspecto. As roupas tradicionais e modestas do ancião pareciam ofendidas com o brilhos e cores vibrantes da jovem. As rugas que sugeriam milênios de idade se acentuavam ainda mais frente à pele límpida e tenra. Enquanto o cabelo da jovem era adornado por talvez centenas de estrelas cujas cores faziam inveja ao arco-íris, a cabeça de Xianggong era a expressão da modéstia: calva e reluzente, enquanto os pelos das sobrancelhas e barba brancas tomavam comprimentos bem maiores que o que parecia ser possível para um rosto ainda humano. Até mesmo as posturas dos dois eram dia e noite. Xianggong caminhava em modestos passos, desapressados como só o eterno pode aprender a ser. Sua companheira, porém, irradiava ânimo e energia em níveis que talvez parecessem impróprios para qualquer um dos imortais.

O indicador de Xianggong atingiu o rosto da mulher antes de suas palavras. "Como ousa?" Perguntou o deus quase que retoricamente. "Como ousa contestar minha autoridade? Eu, Xianggong, Augusta Divindade das Histórias e Guardião dos Feitos Eternos?"

"Ora, não se faça de desentendido, Velhote." Se a impaciência um dia teve um retrato com um rosto, certamente era o que a mulher posava naquele instante com as mãos em sua cintura. O sorriso em seu rosto, porém, mal continha a lisonja. "Mas fico feliz por ter perguntado. Pois eu sou Guanyin, Inspiradora de Heróis, Encarnação da Compaixão e Matrona dos Feitos Presentes."

Xianggong não pareceu impressionado com a bravata. "Eu sei muito bem quem você é, jovenzinha. Mas nenhuma das suas investiduras te dá o direito de vir aqui interromper meu trabalho."

"Engano seu, Velhaco. Koichi Takamura é assunto meu. Diferente dos seus personagens já putrefatos, Koichi ainda vive."

"Temo ter que corrigir sua insolência, oh, Atrevida Divindade de Quase Insuportável Presença. A história dele, bem como toda e qualquer história, já terminou. Por isso consta em meus registros. Agora, se me permite..." Xianggong se movia para retomar o centro do palco quando novamente Guanyin o interrompeu.

"Não, não o permito." Apesar do ritmo quase infantil que Guanyin dava às sílabas de sua frase, sua autoridade não diminuía nem um pouco por conta disso. "Se a história de Koichi não terminou isso faz dela ainda presente. Este palco é portanto tão meu quanto seu. É de meu dever também inspirar novos heróis. E como você bem sabe, o conto de Koichi é um ótimo meio para isso."

"Toda história é uma história passada. Por isso são chamadas de histórias e não..." Xianggong ponderou por um curto instante. "Notícias."

"O dever das histórias é inspirar o futuro. Por isso as ouvimos no presente." Protestou Guanying. "As ouvimos no presente, refletimos sobre o passado, e só assim podemos esperar construirmos um futuro melhor. Discorda, Velharia?"

O suspiro de Xianggong pareceu ter retirado décadas de enfado de dentro dele. "Pois bem. Talvez isso seja divertido. Comecemos então a nobre história de um originalmente, nem tão nobre homem. Koichi Takamura nasceu de Saito e Michiko Takamura, no humilde vilarejo de Himura..."

"Ah, não." Protestou novamente Guanyin, com um sorriso mal contido. "Não é daí que a história começa. Se me permite..."

O Dragão DomadoOnde histórias criam vida. Descubra agora