Desconforto

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Naquela noite, Gal ficou ansioso diante do espelho do banheiro masculino. Como sempre, a figura que olhava de volta perturbou algo profundo dentro de si.  Ele passou as mãos pela curva suave de seus quadris, desejando que sua forma mudasse através da força do pensamento.

Mas não importa quantas vezes ele fizesse esse ritual, seu corpo permanecia teimosamente o mesmo – um lembrete de que ele estava preso dentro do corpo errado.  Uma onda de tontura tomou conta dele enquanto a disforia cerrava suas garras amargas.  Ele caiu contra a parede, com falta de ar.

— Gal? Você está bem?_ Veio uma voz suave.

Gal olhou para cima e viu Gaspar pairando na porta, as sobrancelhas claras franzidas de preocupação.  Eles nunca foram próximos, mas ultimamente Gaspar parecia querer entender o sofrimento de Gal de uma forma que os outros não.

— E-eu não sei..._ Gal gaguejou_ Tudo parece errado. Como se eu não fosse realmente eu.

Gaspar inclinou-se ao lado dele, uma presença silenciosa e firme. 

— É difícil explicar sentimentos que não entendemos completamente. Mas você não está sozinho nisso.

Só então Anthony e Henri apareceram, atraídos pela movimentação. 

— Gal! Estávamos procurando por você em todos os lugares!_ disse Anthony.

— Você está se sentindo mau? _ Henri acrescentou

Gal assentiu miseravelmente e começou a explicar.  Seus amigos ouviam sem julgamento enquanto ele se atrapalhava ao descrever sensações que desafiavam as palavras.  De alguma forma, a aceitação deles acalmou o caos interior.

Mais tarde, enquanto os órfãos se preparavam para dormir, o padre Ronaldo ficou ao lado de Gaspar, elogiando-o baixinho.  Gal estremeceu, sentindo o olhar do padre deslizar sobre ele como uma carícia asquerosa.  Mas com seus amigos por perto, as sombras não pareciam tão ameaçadoras esta noite.

Na manhã seguinte, Gal acordou com a mesma sensação angustiante de estar errada.  Ele abraçou os braços com força, desejando poder desaparecer dentro do suéter enorme. Talvez hoje ele pudesse ficar escondido, poupando-se da agonia de encarar seu reflexo ou atrair olhares na capela.

Mas, ao sair da cama, Henri falou da cama vizinha.

— Ei, íamos jogar futebol depois das aulas. Venha se juntar a nós?

Gal hesitou. Os esportes geralmente intensificavam sua disforia, lembrando-o do corpo em que estava preso. Mas a oferta era gentil e ele sabia que a companhia de Henri e Anthony poderia ser uma distração.

— Eu... eu vou tentar.._ Gal respondeu fracamente.  Qualquer coisa era melhor do que ficar sozinho com seus pensamentos em espiral.

Embora o jogo tenha reacendido a turbulência interna de Gal, correr e torcer ao lado de seus amigos proporcionou uma fuga.  Quando sua disforia ameaçava avassalar, Henri ou Anthony discretamente direcionavam o assunto para assuntos mais leves, dando alívio a Gal.

Naquela noite, os três meninos sentaram-se em seu recanto isolado discutindo o dia. Gal até se viu sorrindo em alguns momentos, confortado por suas brincadeiras despreocupadas.

— Obrigado por me incluirem hoje_ disse Gal calmamente quando houve uma pausa na conversa_ Isso ajuda, estar com vocês dois._ Ele completa tirando um sorriso de Anthony. 

— É para isso que os amigos servem._ Anthony disse e Henri concordou com a cabeça.

Embora a disforia de Gal ainda fosse forte, ele se sentia menos sozinho ao enfrentá-la.  Contanto que tivesse o apoio dos amigos, talvez conseguisse encontrar coragem todos os dias para ser ele mesmo, apesar das dificuldades.

{Quebra de Tempo}

Naquele sábado, enquanto Gal conversava com Henri e Anthony no seu recanto habitual, a voz severa do Padre Ronaldo cortou a alegria com dificuldades.

— Giulia, venha comigo. Agora.

Gal congelou, o pânico se instalou. Ele lançou um olhar de desculpas para seus amigos antes de seguir o padre relutantemente.  A cada passo, a presença iminente do Padre Ronaldo dominava Gal, as memórias dos horrores do passado ameaçavam afogá-lo.

Padre Ronaldo virou-se para encarar Gal com olhos frios.

— Ouvi relatos preocupantes sobre seu... comportamento ultimamente. Praticando esportes, continua andando com aqueles garotos. Parece que eles permanecem te levando você para o caminho errado.

 

— E-Eu... Eu só quero ser normal Padre._ Gal olhou para o chão, tremendo.

— Normal? Não seja ridículo_ Padre Ronaldo zombou._ De agora em diante, seu tempo será gasto em oração estruturada e contemplação. Sem mais distrações.

Ele apontou para trás de Gal após pararem de andar, e o garoto se virou e encontrou uma porta desconhecida. 

— Este será seu novo alojamento. Você ficará aqui até que tenha eliminado esses pensamentos pecaminosos de sua mente.

Gal piscou para conter as lágrimas, com o coração partido. 

— Mas... meus amigos..._ Gal buscava palavras para poder dizer algo.

— Suficiente!_ Padre Ronaldo gritou. Gal se encolheu violentamente.

— Agora entre. E não quero ouvir mais uma palavra sobre essa bobagem.

Gal adentrou o comodo de forma lenta e calma. Quando a porta se fechou, trancando o mundo do lado de fora, Gal caiu em soluços angustiados.  Separado da luz e do conforto que seus amigos proporcionavam, a escuridão parecia ser tudo o que restava.

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A cada "Padre Ronaldo" é uma vontade de socar a cara dele 😰

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