CAPÍTULO 14: Amelie

1 0 0
                                    



   Ajeito a mochila de couro no ombro, sentindo o peso dos  suprimentos e pertences enquanto acompanho o grupo pelas ruas cinzentas e escorregadias em direção ao cais oeste. A cidade de Aggys foi fundada no encontro do Mar Tanis. Algum dia, talvez, uma parte das docas será completamente submerja pelas águas escuras.
   Já se passou um mês e meio desde que deixei a capital kavitana, e surpreendentemente, não sinto falta da vida que deixei para trás.
   Uma névoa matinal, densa e úmida, serpenteia pela superfície do oceano, envolvendo a área em uma atmosfera sombria. Ao caminhar pelo cais, o som dos nossos passos ressoa na madeira velha e coberta de musgo. Ergo o olhar para avistar um homem com um chapéu cônico e uma túnica preta saltando para a doca. Seus olhos escrutinam cada um de nós enquanto o feixe de luz do farol nos ilumina brevemente antes de continuar sua jornada contínua pela enseada.
   — Estão atrasados – diz o glamorizado, sua voz rouca ecoando pelo cais.
   — Não estamos, não. Parece que você que está adiantado – intervém Adrien com uma sobrancelha levantada, a voz cheia da razão.
   A expressão endurecida do goblin adquire um tom sinistro e macabro. O feérico deveria tomar cuidado com sua palavras afiadas.
   — Entrem, antes que seja tarde demais.
   A embarcação fúnebre oscila sob nossos pés quando subimos a bordo, Jack sendo o último dos sete a embarcar. Em seguida, o ser obscuro manobra o pequeno barco para o nevoeiro.
   Passamos as últimas três semanas em um percurso contínuo de terra e mata, compensando o tempo dos três dias festivos no Vale do Melta. Ontem, ao entardecer, finalmente alcançamos Aggys, a cidade das águas cantantes. Porém, agora que sei sobre as nixies, esse nome me deixa desconfortável.
    Pontas de torres altas e pontiagudos como espadas emergem das águas nebulosas, como visões de eras passadas e esquecidas.
   Quando Sasha nos contou sobre as  viagens dos goblins, imaginei que fosse algo instantâneo e simples. No entanto, descobri pelo livro élfico que eles não são apenas viajantes teletransportadores, são guardiões do tempo e espaço. Foram escolhidos pelos próprios deuses para essa função, sua essência intransigente jamais permitindo que fossem manipulados para fins alheios.
   Tolos são aqueles que os julgam como meros seres interesseiros e gananciosos.
   — Este é o lugar onde o passado, o presente e o futuro se entrelaçam – proclama o barqueiro goblin, sua voz ecoando entre os véus do tempo.
   Abaixo de nós, um cenário caótico se desenrola: uma festa de duendes e fadas dançando sob a luz do luar, uma feira alegre que supera todas as outras, soldados lutando desesperadamente em uma guerra sangrenta e nixies saltitando nas águas verdes de uma baía distante.
   Um cemitério de memórias.
   — É possível fazer viagens de tempo, assim como as de espaço? – Bash pergunta cautelosamente, seus olhos sondando as miragens ao nosso redor. Ao seu lado está Logan, seu fiel guarda-costas. Eles nunca se separam ou deixam um de lado, é uma relação admirável que nunca vacila.
   — Depende do quanto você está disposto a sacrificar. Sempre há um preço a pagar – o goblin responde.
   A água embaçada se transforma em um nevoeiro puro e denso. Levo minha mão até a névoa, sentindo-a desaparecer entre meus dedos.
   — Que tipos de sacrifícios? – a curiosidade de Sebastian é palpável.
   O aroma amadeirado e refrescante característico das árvores nos envolve. Estamos próximos. Não consigo ver a Floresta Negra através da névoa, mas sei que está lá.
   — Meios para um fim – responde a Bash, seu olhar de pupilas grandes e vítreas encontrando o dele.
   Então, o barco para suspenso na neblina. Uma imagem desbotada de uma floresta escura e estranha nos cerca.
   — Todas as sete almas descerão com uma memória a menos, a qual serão tomadas como pagamento – anuncia o guardião de espaço e tempo, suas palavras ecoando entre nós.
   Olhares inquietos são trocados.
   O custo da viajem já era conhecido entre nós, mas, a percepção de que algo vai acontecer é totalmente diferente da sensação deste algo acontecendo.
   Victoria é a primeira a descer da embarcação para a floresta, seguida por Jack e Sasha, Logan e Sebastian, e por fim, eu e Adrien. Ele toma minha mão, juntos descemos em direção ao presente.
   Esperava sentir garras arrancando memórias de minha mente, entretanto só tenho a sensação de uma mancha branca turva em minha infância. Algo está faltando, mas não sei o quê.
   Olho para onde o goblin estava há poucos segundos, mas ele já se foi. Os pelos dos meus braços se eriçam, consciente de que não há como voltar atrás.

                                        ⚖️

   Seguimos adiante por entre os troncos retorcidos da Floresta Negra, o vento uiva chacoalhando galhos e arbustos. No céu sombrio, desprovido de estrelas, a escuridão reina absoluta.
   Todavia, a floresta é encantada com vida própria. Vegetação colorida e florescente se espalha pelo chão, enquanto insetos luminescentes deslumbram no céu e flores cintilam como corações pulsantes.
   Seria adorável se não fosse tão perigoso.
   — Precisamos encontrar um lugar para passar a noite - declara Sasha, seus olhos astutos examinando cada som ao redor.
   — Tem uma gruta há 50 metros daqui - informa Victoria, seu rosto voltado para o alto, seus olhos totalmente brancos de uma forma assustadora.
   — É segura. Sigam-me - diz, liderando o grupo para a esquerda, com Jack seguindo de perto, seu arco já em mãos.
    Em seu rastro seguimos eu e Sebastian, nossas afiadas espadas em prontidão. Atrás de nós, Sasha realiza um encantamento de reconhecimento do bosque. Adrien e Logan mantém a retarguarda, com o cavaleiro empunhando uma longa foice reluzente e o feérico com nada seja visível aos olhos.
    Nossos passos são cautelosos e sincronizados, guiados pelos vagalumes que iluminam o caminho estreito. Acima de nós, a copa das árvores nos envolve como um teto verde. Seguro o cabo da espada com mais força, não gosto de me sentir assim encurralada e sem opções. O final do túnel vegetal por alguma razão está iluminado por luzes azuis de vários tons.
   Nos aproximamos com cuidado, observando atentamente nosso entorno, e o que vejo não é nada menos que magnífico.
   À nossa frente, um lago de águas florentes, onde pequeninas fadas saltitam na superfície  e rodopiam no ar, deixando um rastro brilhante em seu caminho. Suas asinhas semi-transparentes batem fazendo um sussurro melodioso. Uma vem até nós e voa passando entre cada um. Elas não parecem incomodadas com nossa presença, o que me deixa aliviada.
   Após alguns poucos minutos, finalmente alcançamos a gruta. Dentro há espaço suficiente para todos, o que é ótimo. Dividimos os grupos de vigília para a cada duas horas, e o primeiro turno é composto por Adrien e Victoria. O restante do grupo deve ir descansar para o longo dia de amanhã.
   Perco a noção do tempo que estou de olhos fechados estando acordada. Levanto do saco de dormir e me dirijo à entrada da caverna. Talvez eu possa ser útil e ajudar a manter a guarda.
   Seu olhar azul-cristalino é o único que encontro.
  — Ela precisava dormir, e eu sirvo por duas pessoas - Adrien diz referindo-se a feiticeira. Seu tom zombeteiro presente nas palavras.
   Me aproximo e me sento ao seu lado na rocha fria, nossos ombros se tocando. Suspiro apertando os lábios, e ele passa o braço sobre mim de modo protetor.
   — Será que todos nós voltaremos para casa? Será que vamos conseguir? - questiono, mais para mim mesma do que para ele.
   — Você não vai morrer, porque não vou permitir - ele respira fundo, sua voz é baixa e pesada — Eu te coloquei nessa e eu vou te tirar.
   Adormeço um pouco mais calma, apesar de saber que as promessas nem sempre são cumpridas.  

Sussurros das Sombras: A Maldição do Reino Sem EstrelasOnde histórias criam vida. Descubra agora