Capítulo 1-SANDRA

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É verão no Rio de Janeiro. Na baixada fluminense o calor parece mais intenso. Nesta pequena casa de três cômodos numa comunidade de Duque de Caxias, a temperatura de manhã deixaria o diabo com inveja.

São seis horas e Sandra já está pronta para sair de casa e enfrentar todos os obstáculos para chegar ao seu trabalho. Ela pedala por quinze minutos, tranca a bicicleta no ponto de ônibus e espera a boa vontade do motorista de passar no horário enquanto pede mentalmente a Deus que um banco esteja vago hoje, algo que raramente acontece. O ônibus chega e incrivelmente hoje não está atrasado, pelo contrário, veio 15 minutos antes do previsto e, mais estranho ainda, tem vários lugares vagos, o que deixa Sandra curiosa enquanto sobre o degrau se apoiando na sofrida maçaneta do veículo e falando ao motorista:

-Bom dia Sr. Gilberto, aconteceu alguma coisa hoje?

O motorista, um senhor rechonchudo de cabelos brancos, com seu clássico óculos escuros de um estilo no mínimo peculiar e moderno, que parece não combinar com o resto de seu look parecendo sair de uma noitada na gafieira suburbana dos anos 70, com um bigode preto enorme, costeletas proeminentes e um charmoso topete que com certeza não era feito de fios humanos (ou até sejam, mas não eram os dele.) volta-se para a direção de sua amiga passageira e, já arrancando o ônibus e fechando as portas enquanto libera a catraca, responde:

-Bom dia, Dona Sandra, é porque o ônibus tá vazio hoje, né? Não sei o que aconteceu, não. Até olhei no calendário pra ver se era feriado, mas não tem nada. No jornal da manhã também não disseram nada, só que tem previsão de temporal no final da tarde. – Respondeu o velho homem.

-Ah sim, que esquisito, né? Tanta gente não vir logo hoje. E sobre a chuva, isso já é normal, dezembro no Rio é sinônimo de temporal. Pior que deixei minhas roupas na corda, vou ligar pras minhas bençãos e ver se alguém pode recolher, isso é, se eles me atenderem, né? – Continuou Sandra.

-Essas crianças de hoje são esquisitas, ficam o dia todo com o celular na mão, mas nunca atendem as ligações, dá pra entender? – Disse o motorista enquanto olhava o trânsito por um dos vários retrovisores.

-É porque eles só veem o que convém, Seu Gilberto, mas eu já mandei o papo lá em casa, ficou sem me responder, fica sem celular, sou eu que boto crédito nessas merdas, como é que é isso? Né não? Tô errada? - Concluiu a mulher enquanto passava seu corpo avantajado para se sentar no banco atrás do motorista, com certa dificuldade para passar pela divisória estreira do lugar segurando sua bolsa em uma mão e o celular na outra.

-É assim que tem que ser, tá certa, tá certa! Bota moral mesmo! - Respondeu Gilberto, passando a marcha e acelerando o veículo em direção ao Centro da cidade.

As sete e meia da manhã, Sandra se prepara para iniciar seu trabalho, hoje ela vai trabalhar inspirada, "sextou" e é dia de receber o salário, todo mundo está empolgado na firma e o calor de hoje pede uma cervejinha no final do expediente.

-BOM DIA AMORES! Como estão? Sextou hoje, hein! - Sandra fala enquanto seus colegas chegam no local. Ela trabalha há cinco anos no supermercado Felicitá, uma nova rede que promove um conceito de "supermercados da nova geração" onde nos seus valores dizem priorizar o bem estar de seus colaboradores e clientes acima de tudo, mas para Sandra isso fica só nos valores mesmo. Para ela e a maioria de seus colegas, receber seu salário em dia é o que importa.

-Bom dia, Querida! Tá animada hoje, hein? Deve ter dado ontem né, sua velha safada- Disse Bruno, um dos colegas de trabalho de Sandra. Bruno é gay e não tem vergonha nenhuma disso. Aos vinte e dois anos ele tem mais amor próprio e autoestima que Sandra jamais teve em toda sua vida. Sua positividade e alegria constantes ajudam a passar pelos perrengues do trabalho e da vida. Pode-se notar o tamanho de sua autoestima quando este adentra o local com seu penteado desafiador: Um cabelo castanho-claro com alisamento de farmácia, enrolado num pequeno rabo de cavalo, que mais seria um rabo de rato, unhas pintadas de preto e imensos óculos escuros que fazem-lhe parecer uma personagem perdida de uma paródia de "Power Rangers". Ele é como um filho para Sandra. Após guardar no armário sua bela bolsa da grife "Luis Vitão" comprada na loja Uruguai Ana's, ele continua sua provoação:

-Anda, conta logo quem foi o boy? É dotado? - Concluiu, cutucando Sandra.

-Para com isso menino! Quem disse que pra tá feliz precisa de macho? Eu hein, eu não preciso de homem pra nada, não. – Respondeu a mulher, terminando de tomar seu cafezinho prioritário da manhã.

-Ah, tá. Acreditei, sim. Você não precisa de homem, até aparecer um macho que te pega de jeito e te deixa apaixonadinha, né? Tipo o Carlão...

-Que Car- Ah, meu amor, sabe de nada, Carlão já é carta fora do baralho. Carlão já foi. Tô livre, leve e solta.

-Mentiraaa!? Então hoje você vai me contar tudoooo! Quero saber o que rolou dessa vez.

-Vou contar sim, quer dizer, isso se aquele energúmeno do gerente não vier. Estou torcendo pra que ele dê essa folga hoje pra gente de ver aquela cara de trakinas dele, pelo menos numa sexta dessa.

-Dificil, hein. Ouvi o pessoal dizendo que hoje vai ter bastante movimento, a empresa fez uma campanha de divulgação pesada. Tá rolando papo até de ter que ficar depois do horário hoje. - Constatou Júlio, outro colega de trabalho que preparava-se para iniciar os serviços. Júlio trabalha no açougue e é um dos primeiros funcionários da casa, prestando seus serviços a mais de quinze anos ininterruptos. Ele foi o único funcionário reaproveitado do antigo supermercado antes do grupo Felicitá comprar e reformar o local. Acomodado, nunca aceitou uma promoção e nunca quis aprender outra função. Faz a mesma coisa no mesmo lugar e está muito bem nessa situação. Ele não deseja nada mais que isso, ainda mais faltando pouco tempo para se aposentar, cerca de mais quinze anos.

-Eu que não vou ficar depois do horário hoje, pode falar o que quiser- Disse Sandra indignada. -Já ficamos a semana passada toda saindo tarde daqui. A gente tem vida, eu moro longe, não vou sair tarde hoje. Hoje vou curtir um pouco, vou beber e me divertir! É ANO NOVO, PORRA!

-Você sempre fala isso, mas é a primeira a aceitar, mona. Ninguém acredita mais nesse seu papinho.- Provocou Bruno.

-Ah é? Então vamos ver, querido. Hoje o circo vai pegar fogo. Concluiu e mulher, enquanto batia palminhas sarcásticas sob uma risada preocupada de Júlio e o deboche de Bruno.

Todos se dirigem a seus postos. Enquanto se prepara para iniciar o caixa, Sandra não consegue parar de pensar na situação estranha no ônibus hoje. Quando contou sobre o ocorrido para seus colegas, não ouviu nada similar mas algo parecia estranho, o clima no ar é esquisito e um sentimento de urgência constante pressiona seu coração enquanto um arrepio sobrenatural percorre seu corpo e um pensamento inunda sua mente: Algo ruim vai acontecer hoje.

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