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Texto inspirado na música "Lover You Should've Come Over" do cantor Jeff Buckley.

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A manhã iniciou com um acordeão tocando ao longe, como um sussurro singelo no meu ouvido. Me aproximei da janela, indo em direção ao som. Afastei uma parte da cortina para que pudesse olhar do lado de fora e observei as pessoas de luto caminhando pela rua. É tradição na cidade um grupo de familiares e amigos caminharem de preto pela vizinhança depois de deixarem o cemitério após a morte de alguém querido. Para ser sincero, eu sempre achei isso um pouco mórbido, porque eu vejo essas pessoas cabisbaixas, de ombros caídos e vestes pretas e não consigo pensar em nada mais do quanto eu queria que, quando morresse, não fizessem isso comigo. Acho que eu até ressuscitaria para impedi-los de fazerem a mesma coisa, porque eu quero que vivam independente de minha morte.
As poças de água e os pingos estridentes da chuva molhavam tudo o que não estava sendo protegido pelos guarda-chuvas. Eu conseguia ouvir o som da água quando alguém do grupo pisava em uma mini poça sem que percebessem, conseguia ler os seus lábios quando, em meio às lágrimas, diziam um palavrão, irritados por terem molhado sem querer os seus sapatos. Os últimos a passarem foram o músico com o acordeão e uma mulher ao seu lado, protegendo-os com um guarda-chuva. Fiquei tanto tempo olhando a rua, que nem percebi quando o som da música havia se dissipado e apenas o ruído das gotas fortes que caíam sobre o telhado se sobressaíram em meus pensamentos. Fiquei estagnado no passado, na música do acordeão, tentando entender o que ela queria passar.

Quando era noite, não esperei que o relógio da cidade tocasse às seis, então me deitei na cama ansiando que o amanhã se tornasse esclarecedor sobre os meus sentimentos. Passei no meu sonho como se estivesse longe demais, como se estivesse ali para uma situação breve demais. E então caí. Caí que nem senti. Estava sonhando, óbvio, mas caí como um patinho e, de repente, alguém me deu a mão. De relance, como uma fumaça fantasmagórica, vi a minha antiga amada ali, e com um ruído breve e esquisito, ela disse: "Vem comigo". Tudo, de repente, ficou vermelho à minha frente, como uma grandiosa tela vermelha degradando em cinza e, por fim, preto. Acordei. Não sei ao certo, no entanto, senti as minhas mãos e joelhos gelados, meu coração pulsando alto e lágrimas ardidas querendo escorregar pelas minhas bochechas.
No dia seguinte ao pesadelo, visitei o meu jardim de rosas que costumava cuidar com ela — agora ela só resta nos meus sonhos.
Volto ao jardim com a certeza de que não devo chorar.

Amor, você deveria me procurarOnde histórias criam vida. Descubra agora