01 - Um lugar

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"Se um homem insistisse em ser sempre sério, não se concedendo nunca um momento de brincadeira e de relaxação, ou adoeceria ou se tornaria instável sem o saber."

Heródoto

Acordará perdido, em meio a lençóis, fronhas e cobertas desconhecidas, essas, por sua vez, estampadas demais para o seu gosto. Não havia ninguém ao cômodo a não ser a culpa e um cheiro de álcool insuportável de si mesmo. O homem de 1,80 e barba por fazer não tinha noção de como chegará ali, principalmente pelo fato de que mal gostava de sair de casa, quiçá beber acompanhado.

Decidiu procurar suas roupas para o mínimo de dignidade antes de entender com quem havia dormido aquela noite, primeiro balançou as cobertas e pode ver ao outro lado da cama, aparentemente king size, suas roupas dobradas perfeitamente acima de uma cadeira.

Levantou ainda meio tonto, observando em volta e percebendo que o quarto tinha uma áurea de libertinagem palpável, pensou em quantas pessoas já haviam passado por ali. Pegou a roupa a sua frente e viu que existia um banheiro logo ao lado, "pelo menos isso, uma suíte" - falou, pensando que não queria encontrar quem quer que fosse sem ter ao menos jogado uma água no rosto.

Ao entrar, viu que as coisas eram milimetricamente postas em lugares específicos, como se em algum momento ele calcula-se mexer na posição do porta sabonetes, uma terceira guerra mundial aconteceria. Lavou o rosto com o maior cuidado para não molhar tudo, colocou uma gota da pasta nos dedos e passou pelos dentes, afim de tirar um pouco do bafo matinal.

Vestiu a roupa e ficou alguns minutos parado, olhando para a parede e pensando em como aquele banheiro era extremamente satisfatório, dessa vez não tinha caído em um ambiente duvidoso, cheio de coisas jogadas e porcamente limpas. O cesto de roupas não tinha sequer vestígios do estilo de quem morava ali e estranhamente o cheiro de lavanda que impregnava o local, era um deleite. 

Ao sair, observou melhor o lugar, as paredes eram brancas misturadas com um rosa assustador aos olhos e com quadros que avisavam claramente que ali morava uma pessoa queer. Para além, um espelho extremamente alto, uma mesa de cabeceira, uma cadeira avulsa, uma estante de livros entupida de obras literárias e uma cama. A janela dava para uma vista ampla da avenida paulista e das pessoas aparentemente felizes que passavam por lá.

Parou ao lado da estante e leu alguns títulos "A Era das Revoluções", "O Príncipe", "Heróis e Maravilhas da Idade Média" ... deu uma risada, era obvio que os títulos remeteriam a Europa, patético. Porém, era surpreendente alguém ter em sua estante um exemplar de Le Goff sem ao menos ser historiador - era o que Amaury supunha.

Seu celular estava acomodado abaixo de um dos travesseiros, apressadamente o homem pegou o aparelho para olhar a hora e quanto tempo havia perdido ali, ligou a tela e um alerta da agenda piscou - "reunião às 08:00h" balbuciou, "e já é 13:00h da tarde, que beleza!". Olhou-se no espelho, estava vestido com uma blusa preta gola alta, uma calça alfaiataria da mesma cor e um sapato formal, ele gostava do básico e prático, "até que estou apresentável para comparecer a universidade se necessário".

Decidiu que era o momento de sair e enfrentar o mundo, abriu a porta e percebeu que estranhamente não havia ninguém naquela casa e não apenas no quarto. Caminhou lentamente pelo corredor, observando que em um dos comodos tinha o que poderia ser considerado um estúdio de maquiagem, diversas perucas podiam ser vistas em uma estante que ia do chão ao teto.

Ao chegar na sala, se deparou com uma mesa posta de café da manhã, cheio de pães e bolos, um bule de café amarelo e frios que não deveriam estar tanto tempo fora da geladeira. Não iria comer nada daquilo, estava de ressaca e sem um pingo de fome, guardou o que precisava na geladeira, torcendo para que aquilo não fosse invasivo e observou um bilhete pendurado na porta, "querido, não quis te acordar, a chave do seu carro está pendurada no gancho e a porta está aberta, ao sair não esqueça de encostar para parecer fechada, foi uma ótima noite".

Que bizarrice, quem em sã consciência deixaria sua casa nas mãos de um desconhecido? Bom, Amaury não queria perder muito tempo... prontamente pegou a chave e desceu o mais depressa possível pelas escadas daquele antigo prédio, pensando como havia subido tantas, e ainda por cima bêbado na noite anterior.

Entrou no carro e abriu o aplicativo de mensagens, deixava tudo arquivado e sem notificações, odiava ter que se comunicar por aquilo. Precisava saber o que tinha acontecido na reunião, qual era a próxima pesquisa que a universidade queria e quem seria seu aprendiz, ao qual ele não esperava muito, eram sempre iguais, deslumbrados com a história em um mundo de pôneis saltitantes.

A primeira mensagem que leu foi de seu amigo Ignacio que o xingava de nomes impronunciáveis por não ter comparecido a reunião e que a sua próxima pesquisa seria realmente em Santos, litoral de São Paulo, mais especificamente sobre o massacre que ocorrerá durante a Segunda Guerra Mundial, contra os japoneses no Brasil. Interessante, porém, sem nenhuma noticia sobre quem seria seu aprendiz.

Quando pensou em dirigir até a instituição de ensino, recebeu uma mensagem "oi Amaury, meu nome é Diego Martins, sou seu novo aprendiz, estou louco para trabalhar com o senhor, você é uma inspiração no mundo da pesquisa, espero que a gente se de bem".

Martins, aquele nome não lhe era estranho...

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