2. Drama Club

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Quando se tem uma rotina corrida, pode-se ter certeza de que algumas coisas vão se repetir numa frequência assustadora, principalmente se você for desleixado. Infelizmente isso se aplicava a Hua Cheng, que não só esquecera o guarda-chuva em casa, como também o casaco.

Em sua defesa, o aplicativo do tempo no celular indicava que a probabilidade de chuva naquele dia era de 70%, e que caso chovesse, seria somente de noite. Que culpa ele tinha, se a água decidira se adiantar por si só, e numa quantidade absurda? Estava caindo o mundo ali, sua cabeça doía pela noite em claro e ainda que corresse, não chegaria a tempo de pegar o próximo ônibus, não com toda aquela água para atrapalhar o percurso.

Seu dia estava longe de ser bom, o que era irônico se comparasse com o quão única fora a noite. Verdade fosse dita, ele nem precisava fechar os olhos para lembrar do corpo do vizinho, guardara o máximo possível do espetáculo particular de madrugada em suas lembranças. Talvez aquilo fosse tudo, não é? Não dava para prever quando o mais velho simplesmente fecharia a janela ou veria que alguém o espiava.

O moreno não poderia esperar que, assim como na ficção, o vizinho fosse se apaixonar sem motivo, ou se aproximar sem nunca terem conversado, querendo algo além de um simples diálogo formal, ou talvez quebrar sua cara por tê-lo vigiado todas essas noites.

Sonhar era bom, claro, fantasiar e gozar vendo-o pintar de madrugada era fantástico. Mas a quem queria enganar? Xie Lian sequer sabia seu nome ou reconhecia sua existência. Até então, podia se classificar como um pervertido, e apenas isso.

Encarando o cinza acima da própria cabeça e encostando-a num pilar de sustentação do prédio, Hua Cheng se deixou respirar fundo. Era absurdo que a melhor parte de seus dias desde que se mudara fosse exatamente essa: bater uma e fantasiar um romance com o cara da casa na frente.

Ele prendeu os cabelos num rabo de cavalo, ajeitou a mochila a fim de garantir que estava completamente fechada e depois de esperar cinco minutos, correu.

Não tinha como o dia ficar pior do que aquilo.

Xie Lian estava frustrado. Não que vivesse apenas da venda dos quadros, se fosse o caso, já estaria passando fome e teria perdido o apartamento há muito tempo, mas não gostar de nada do que produzia, era no mínimo algo que nunca pensou que lhe aconteceria.

Sua maior renda vinha de webtoons assinados com um pseudônimo conhecido no público alvo como Dianxia. As obras tinham traços coloridos e delicados, bonitos demais e trágicos demais, faziam um sucesso inesperado e muito bom. Só que não eram exatamente o que o artista imaginara para a vida. Ele amava pintar, e ter fracassado justamente nessa área, trazia um gosto amargo à boca.

Boa parte de suas telas eram compradas pelos amigos. Já não ansiava por tê-las expostas em galerias ou que vendesse qualquer uma delas por um valor exorbitante que lhe garantiria ao menos 6 meses sem pegar numa mesa digitalizadora e numa maldita caneta, mas um pouquinho de reconhecimento viria a calhar.

O capítulo da semana já estava concluído e precisava trabalhar no roteiro do próximo, mas por acúmulo de stress e pressão do editor, cedera aos pensamentos intrusivos: uma garrafa de vinho barato, uma grande tela em branco, e o cara curioso que costumava madrugar no computador, mas agora perdia seu tempo venerando-o de madrugada, fariam com que se sentisse bem.

Ah, o ego decididamente lhe causaria problemas algum dia.

A verdade é que tinha notado o rapaz há alguns meses. De início ficou um pouco ofendido, aquilo era no mínimo invasão de privacidade. Ele não estava errado em ficar sem roupa na própria morada, errado era quem estava de fora e ficava de olho. Xie Lian não se importava em ser o vizinho pelado, mas a ideia de ter um stalker maluco, lhe causava certo incômodo.

Não sabia dizer quando se acostumara a estranha "companhia", mas isso provavelmente tinha a ver com o fato de ter topado com o sujeito pelo menos quatro vezes no ônibus, e não ter conseguido tirar os olhos dele em nenhuma delas.

Os longos cílios escuros eram bonitos, e faziam um conjunto perfeito com o nariz de boneca de porcelana e os lábios vermelhos. Apesar de não saber o nome de seu admirador, e de antes tê-lo analisado depressa, apenas pela luz amarela do apartamento, visto de perto, era realmente bonito.

Parecia carecer de vitamina D, tamanha palidez. Ou talvez os cabelos escuros deixassem-no mais branco, quem sabe? Tinha piercings em ambas as orelhas, um fio longo e escuro pendurado no pescoço que terminava em um pingente de flor no peitoral. Anéis em ambas as mãos, dedos longos e roupas escuras.

Em todas as vezes que o vira de dia, o rapaz estava dormindo profundamente. Parecia idiota, mas Xie Lian sentara consigo em duas delas, e tivera o cuidado de descer antes que chegasse seu ponto, para evitar que fosse visto.

Não que conhecê-lo oficialmente fosse algo ruim. Ele só temia a possibilidade de perder seu admirador e o joguinho privado no qual haviam entrado, sem regras, sem privações e totalmente despudorado.

Seja lá qual fosse o desfecho futuro daquele pequeno pecado, o pintor ainda não estava disposto a perdê-lo.

A chuva estava cada vez mais forte, e os raios se cruzavam de maneira desordenada, formando um show de luz espetacular acima de si. Na janela, observando o topo dos guarda-chuvas coloridos e apressados na vizinhança, Xie Lian se perguntou se o vizinho estaria com muito sono, já que estivera lhe admirando até o nascer do sol.


xxContinua~

Despudorado cor-de-rosaOnde histórias criam vida. Descubra agora