Amoxicilina de 8 em 8h, loratadina de 12 em 12h e um paracetamol aqui e outro ali para ajudar a se sentir vivo, tudo isso regado a muita água e algumas maçãs. A boca de Hua Cheng desconhecia qualquer outra coisa há dias, e ele temia que a tal gripe evoluísse para algo pior.
Na quarta manhã desde que pegara o atestado de dois dias, San Lang se levantou. Ele cambaleou descalço até o chuveiro, sentindo o azulejo frio com as solas dos pés e se questionou como tinha sido capaz de sobreviver nos últimos dias.
O chuveiro chiou, reclamando do quão baixo fora ligado, mas cumpriu seu papel: em poucos minutos a névoa quente e inebriante já cobria praticamente tudo. O rapaz lavou os cabelos com alguma dificuldade, sentia o corpo enrijecido e travado, a água quente ajudaria a relaxar os músculos.
Demorou mais do que o previsto no banheiro, mas fez a barba, escovou os dentes e fez um coque alto, deixando alguns fios soltos ao redor do rosto. Sentia-se um lixo. Não sabia se o chefe ainda o aceitaria de volta, afinal tinha ali duas faltas injustificadas para descontar do salário, e era novato.
A vida de adulto não deveria ser tão fodida. Ele não deveria, na altura dos seus vinte e poucos anos, ter tantas responsabilidades e problemas, como se fosse viver para sempre e tudo dependesse do hoje, do agora. Caramba, ele mal tinha ideia do que estava fazendo com o presente, que dirá do futuro.
Estava exausto, e vendo o próprio reflexo no espelho, Hua Cheng só pôde concluir duas coisas, a primeira é que perdera peso e a segunda, é que precisava de outro emprego.
Ainda nu, caminhou pelo quarto em busca de alguma roupa limpa. Encontrou uma calça limpa e esquecida no fundo do guarda-roupa e uma camiseta ridícula que ganhara de amigo secreto, com uma frase imensa e que fazia alusão a Alice no País das Maravilhas e alguns rasgos propositais na região do umbigo e de um dos mamilos, nada de cuecas ou meias usáveis, para o seu desespero.
Usando um jeans skinny que realçava tanto seu quadril largo quanto bumbum, e uma camiseta sugestiva de eat me, drink me, ele passou a juntar toda a roupa suja. Passaria na lavanderia da rua, deixaria tudo aquilo batendo e tomaria um café.
Já estava bem, daria certo. Não dava para ficar pior que aquilo, não é mesmo?
—------
Xie Lian estava com problemas. Precisava entregar o storyboard do próximo capítulo até as 22h daquele dia. Eram 8h15 e ele sequer havia planejado o que faria dali adiante. Estava ficando cansado da narrativa, a história estava se arrastando e a trama em si ficando cada vez mais cansativa. Ele temia que logo seus leitores abandonariam o webtoon e partiriam para um mais agitado. Faltava algo. Mas o quê?
Estava sentado na cafeteria da rua, fones enormes e escuros com os melhores abafadores possíveis tampavam as orelhas e provando o quão a sério estava levando aquela missão, estava até mesmo usando os óculos de descanso que sempre ignorava ao trabalhar.
Prevendo que se esqueceria do chá, decidiu pedir logo um gelado. O sanduíche, parcialmente mordido, fazia companhia a obra do caos que lhe cercava.
Os pés seguiam a batida frenética de Chick Habit, de April March, mas mesmo a adrenalina de Tarantino não seria capaz de lhe alcançar ali: estava inerte, perdido entre a página em branco, a caneta e a mesa digitalizadora.
Xie Lian estava travado.
E aquilo provavelmente lhe custaria o aluguel do mês.
—-------
Hua Cheng permitiu-se respirar sem o nariz congestionado pela primeira vez em dias e agradeceu aos céus por se recuperar depressa. Os olhos reclamaram da luz repentina, então, além das duas mochilas cheias de roupas para lavar, ele também levava um óculos escuro redondo no rosto. Era uma visão um tanto peculiar para um bairro pequeno: um rapaz de roupa apertada e rasgada, todo de preto, mostrando mais pele do que deveria numa manhã de quinta-feira, carregando mochilas enormes e visivelmente cheias, usando os óculos de vampiro e de postura arrogante. Ele parecia pronto para a guerra, disposto a enfrentar seu pior inimigo.
E tudo que queria era um café estupidamente quente.
Pisando duro e com passos largos, o rapaz caminhou depressa. Sentia o estômago doer e ainda estava sonolento por causa dos remédios, quanto antes comesse, melhor.
Devido ao horário, a rua estava pouco movimentada. Viu alguns vizinhos idosos jogando na praça logo adiante, e sorriu consigo mesmo. Ao menos a vizinhança era boa. Tinha de tudo ali: lanchonete, lavanderia, mercearia, farmácia, e claro, o vizinho gostoso, mas depois de ter visto o cara em seus delírios febris mais de uma vez, San Lang estava decidido a dar uma pausa na rotina de stalker. Aquilo não era saudável e muito menos seguro.
Não poderia de forma alguma se apaixonar por uma visão, alguém que só conhecia de vista. Estava carente, doente e cansado. Talvez manter uma breve distância do vizinho fosse uma boa ideia, um tipo de recomeço.
Ou ao menos, era nisso que pensava quando entrou na padaria e topou justamente com a figura que atormentava sua alma.
Lá estava ele, de postura única e ereta, sentado e encarando um notebook. Parecia concentrado, tinha a testa franzida e uma expressão preocupada no rosto bonito. Isso, até notar que estava sendo visto e levantar o olhar.
Hua Cheng engoliu em seco e sentiu todo o sangue do corpo acumular-se depressa no rosto. A quem queria enganar? Seria impossível não se apaixonar por um homem tão lindo, ainda mais quando ele, mesmo sem conhecê-lo, era capaz de lhe dirigir um sorriso tão doce e puro como aquele.
De repente, a falta de café e a gripe não eram os menores dos seus problemas.
O vizinho levantando-se de onde estava e caminhar em sua direção, ainda sorrindo, era.
XXxx--Continua.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Despudorado cor-de-rosa
RomanceEspiar o vizinho pintor é o passatempo favorito de Hua Cheng, mas quem será que está espiando quem, afinal? / Hualian