Minha festa de vinte e três anos estava me dando nos nervos, até mesmo nos mecânicos. Aquilo estava mais para um leilão cuja mercadoria a ser leiloada era eu. Meu pai me levava de lorde em lorde, e era só observá-los um pouquinho para saber como agir perto de cada um. O senhor de Tarkov adorava uma mocinha tímida e recatada, e como vários ali, tinha um estranho fetiche por partes robóticas. Mas eu tinha um interesse maior naquela noite, um que despertou enquanto eu descia as escadarias para o salão. A pele negra retinta e avermelhada, os cabelos muito curtos rente a cabeça, vestido num elegante smoking preto, não apenas sua beleza extrema me chamou a atenção, mas algo mais. Ah, seu olhar me julgando de longe foi um adicional interessante.
Ver aquele rapaz foi um alívio e uma surpresa, e uma ótima maneira de contrariar o meu pai. Ele me deixou claro que eu deveria escolher lorde Olendas Tarkov para dançar, mas esqueceu de dar a ordem direito.
Quando pude me aproximar do rapaz misterioso, acreditava que fosse mesmo da realeza, mas suas palavras e seu jeito observador lhe entregaram. Ele não agia como um típico membro da elite, cego de tudo que estava fora de sua bolha de bens e prestígio. Não, ele via mais, notei o desconforto muito bem escondido enquanto ele bebericava uma taça de ulnos, uma bebida dourada e translúcida com saber de mel e frutas do Jardim Espiral. Eu odiava. E o modo como ele se desfez da taça depois de poucos goles me disse que ele também não havia apreciado.
Dançar com ele foi um deleite, o ápice do baile, visto que tudo ao meu redor era o mesmo de sempre. Ele era uma incógnita, seria um ótimo candidato a brinquedinho para mim, mas felizmente, não parecia ser muito manipulável. Sim, felizmente. Isso tornava o jogo muito mais divertido de se jogar.
Depois da dança, ele sumiu. Eu seria tola se dissesse que acreditei que ele havia indo embora, mas tinha outras coisas fúteis com que me preocupar. Seja lá o que ele estivesse planejando ali, esperava que conseguisse. Qualquer coisa que ferrasse os planos do meu pai me deixaria de bom humor.Me perdoe por não ter dançado com o senhor - lamentei com minha melhor voz de arrependimento, muito bem medida. - Devo dizer que estava… um pouquinho nervosa. Deve me achar uma tola por isso.
Ah, não, não é problema algum - certificou-se com certa avidez. - Não precisa se sentir assim comigo.
Lorde Olendas ergueu sua mão e passou os dedos pelo meu cabelo. Qual a necessidade de ficar tocando o meu cabelo? Virei meu rosto para o lado, porque eu estava sem jeito de estar sendo galanteada por um lorde tão poderoso, pelo menos na cabeça dele devia ser isso.
Uma mulher tão bonita e poderosa não deveria ficar tão acanhada.
Típico.
Nem todos apreciam estar perto de alguém tão… diferente - suspirei.
Ah, não se preocupe com isso, seu rostinho humano é lindo. Já a outra parte - ele se aproximou um pouco mais, o jeito que olhava para mim como se eu fosse a próxima refeição me fez querer me atirar pela sacada, ou atirá-lo, o que fosse mais rápido. - Tem quem goste de um diferencial, deixa algumas coisas bem mais interessantes.
Eu sorri, de ódio. Eu poderia dizer-lhe algumas verdades, socá-lo ou empurrá-lo da sacada. Poderia dizer que ele era um lixo asqueroso e repugnante, uma praga pútrida e mandá-lo enfiar todo aquele cristal tarkoviando naquele lugar. Mas senti aquela familiar descarga elétrica que ia da minha nuca para dentro da minha cabeça, me obrigando fazer o que eu não queria. Minha mão direita logo subiu para trás do meu pescoço, sentindo o calor daquela parte que ainda era carne e osso, meus olhos se fecharam e soltei um leve gemido de dor.
O que houve? Está tudo bem?
Uma leve dor na nuca - abri os olhos e encontrei suas sobrancelhas franzidas em seu rosto amarelado. - Não preocupe, acontece quando não se é totalmente humano. Podemos entrar?
Claro, vamos.
Ele estendeu o braço que eu não queria tocar, mas era obrigada. Voltamos para o salão, e a alguns metros de nós estava o rei, conversando com alguns convidados. Quando seus olhos me encontraram, o encarei de volta com toda a raiva acumulado por tantos anos. A princesa mecânica tinha que voltar a dançar.
Mais tarde, finalmente livre, deixei que duas das minhas damas preparassem o meu banho. Ficaria horas na banheira para tirar o asco que sentia depois de servir de isca. As moças se ofereceram para me ajudar com o vestido, mas as dispensei educadamente. Meu quarto, rodeado por janelas do teto ao chão, estava fracamante iluminado apenas pelos pequenos orbes flutuantes e o brilho da cidade lá fora.
Alguns androides permaneceram na suíte enquanto eu me preparava. Entrei na banheira redonda e espaçosa que ficava numa área privada da suíte, a qual jazia erguida no ar pelo magnetismo, assim como os cinco degraus para chegar nela, senti a temperatura morna da água me envolver, trazendo alívio imediato ao meu corpo. Não precisava me preocupar com as partes mecânicas, totalmente a prova d’água. Parte do meu tórax e cintura também tiveram que ser substituídos, a explosão havia destruído vários dos meus ossos.
A noite, todo o ambiente estava em tons escuros de ocre, marrom e cinza. lá fora, através das várias janelas do teto ao chão, observei os grandes arranha-céus, edifícios térreos e alguns flutuantes, com suas janelas iluminadas ao longe. Carros flutuantes desciam e subiam, poucas estrelas brilhavam, ofuscadas pelas luzes da cidade, mas bem distante, onde os olhos não podiam ver, estaria uma cidade não tão brilhante, não tão alta. Meu pai sempre dizia que a verdadeira Avora era onde o nascer do sol coroava. Ele se esquecia do fato de que mesmo nas Terras Crepusculares a oeste era possível ver o sol nascer, era possível sentir sua luz. Não queria me preocupar com problemas sociais, queria ser cega como os outros e me acomodar na minha bolha, mas haviam muitas coisas que me faziam despertar.
Suspirei e fechei os olhos, limpando minha mente de qualquer pensamento. Mais tarde, já vestida numa camisola, sentei-me em frente a penteadeira e soltei os cabelos, penteei com delicadeza, as pontas cinza claras ondulando a cada escovada. Por fim, deixei a escova sobre a mesa. Olhei para minhas mãos sobre o meu colo, restara apenas uma metade humana da minha mão direita. Sentir as coisas com a pele era diferente de sentir com metal. Embora ele fizesse um excelente trabalho de sensibilidade, havia um calor, uma vibração que só a pele poderia distinguir. Voltei lateralmente o meu rosto para o espelho, como sempre fazia, deixando visível apenas o que restava de quem eu poderia ter sido. E então virei-me completamente para frente vendo toda a minha face.
Se me perguntassem quem é Cybelle Cypher, de verdade… eu não saberia o que responder.Quase uma hora depois, sem conseguir pregar os olhos, vesti meu hobby de seda preto por cima da camisola preta de alças finas. Estava frio, mas tomar um ar no jardim me ajudaria a relaxar minha mente. Toquei o sensor na parede e as portas se abriram silenciosas. Mal dei um passo para fora quando o avistei seguindo pelo corredor. Me escorei na parede com os braços cruzados.
Ele não tinha o mínimo de noção do perigo.
Pigarreei alto o suficiente para que apenas ele ouvisse, as câmeras de segurança capturavam áudio e eu certamente não gostaria de ser pega saindo no meio da madrugada. Detalhe: nenhuma delas apontava para os meus aposentos, bom… não mais. Digamos que eu havia resolvido aquela questão.
O belo rapaz parou assim que me ouviu e virou-se para trás lentamente, sem dizer uma palavra. Quando me olhou, eu tinha um sorriso lateral e uma sobrancelha erguida. A expressão dele era de um quase alívio por ser eu a pegá-lo em flagrante. Ah, eu não ficaria tão aliviada assim. Descruzei os braços e ativei o teclado do smartwatch no meu pulso esquerdo. O teclado surgiu pelo meu antebraço mecânico e digitei rapidamente. A mensagem surgiu como um pequeno holograma azul translúcido, flutuando acima do smartwatch:Ainda não sei o seu nome, meu lorde.
Ele franziu o cenho e com um segundo de hesitação aproximou-se de mim, sempre pelo canto do corredor. O rapaz de smoking preto pegou o meu braço com delicadeza e digitou sua resposta:
Oseias, doce princesa.
Sorri, e senti a ausência do calor de sua mão quando me soltou e digitei minha última mensagem:Tem 3 minutos para sair daqui, antes dos guardiões te pegarem. É melhor correr.
Seus olhos passaram das palavras para mim e ele sorriu, balançando a cabeça. Deu alguns passos de costas e então se apressou. Logo sumiu de vista.
Oséias. Nunca havia conhecido alguém com aquele nome. Minha curiosidade só aumentava. Se minha intenção era espairecer no Jardim Espiral, falhei miseravelmente. Voltei para o quarto curiosa. Qual era o plano dele? Havia tido êxito naquela noite? E, entre outras questões, como ele parecia saber os exatos pontos cegos das câmeras, sendo que, bem… eu mesma havia mudado elas de posição?
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Terra Do Sol Nascente
Science FictionO pai de Cybelle Cypher, rei de Avora, sempre deixou claro que "a verdadeira Avora era onde o nascer do sol coroava". Ele se esquecia de que, mesmo na escuridão, a luz poderia ser encontrada.