Capítulo 1

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Alathea amanheceu chuvosa. No entanto, não foi um empecilho para quem tinha a necessidade de sair de casa.

Dessa vez, Kayla acordou mais cedo do que o habitual e já esperava do lado de fora da feira. Quando abriu, foi a primeira a entrar. 

Com a bolsa cheia das coisas que conseguiu comprar, seu humor melhorou consideravelmente. Nem se importou quando entrou em contato com a chuva novamente. Se fosse permitida, gostaria muito de cantarolar alguma coisa nesse momento. O problema é que a frase “contra às regras” sufocava essa vontade.

Por muito tempo, foi estranho saber que às pessoas que passavam por ela nunca ouviram e nem ouviriam sua voz. Quando cresceu o suficiente para entender, acabou ficando mais rotineiro, mas nunca deixou de ser algo que pesasse em seu interior.

Chegou em casa e a primeira pessoa que viu foi Derek. Sem se importar de molhá-lo, deu um beijo em seu rosto fazendo com que ele protestasse.

Tirou um pacote de balas de dentro da bolsa e entregou para o irmão.

— Divide com sua irmã! — Kayla gritou quando já estava quase no banheiro.

Secou-se e trocou aquela roupa molhada rapidamente, não querendo ficar doente por causa do frio que se instalou naquela manhã.

Depois disso, foi até a cozinha. Pegou a bolsa com as compras e retirou tudo de dentro. Abriu alguns armários e começou a guardar as coisas de forma organizada.

— Voltou rápido. — Iridia comentou vendo a filha abaixada para abrir os armários inferiores.

— Cheguei bem cedo. — Kayla falou enquanto se levantava e dava espaço para a mãe ver o que conseguiu comprar. — Vai durar algumas semanas.

Iridia se aproximou da filha e depositou um beijo em sua cabeça antes de dizer:

— Obrigada, minha flor. Eu sei que era parte das suas economias...

Kayla segurou o rosto da mãe entre as mãos.

— Nossas economias. — Corrigiu-a. — Guardei aquele dinheiro para a gente. — Afagou o rosto da mãe. — Agora, que tal prepararmos um almoço caprichado para toda essa gente? — Perguntou apontando para os irmãos que estavam dividindo as balas que ganharam.

Iridia riu e acompanhou Kayla.
Logo após deixar o almoço pronto, Kayla pegou o frasco de remédios que conseguira pela metade do preço. Não era nenhum antibiótico, mas teria que ajudar pelo menos um pouco.

Foi até o quarto onde o pai estava e bateu à porta, escutando um entra logo em seguida.

— Como o senhor está? — Perguntou assim que entrou.

— Estou um pouco melhor e estou falando a verdade. — Misael se defendeu ao ver o olhar acusador da filha em sua direção.

Por fim, Kayla sorriu.

— Consegui um remédio novo. Acho que é melhor que o de antes. — Colocou o frasco de comprimidos na cômoda. — A comida está pronta. Prefere que eu traga aqui?

Misael fez que não com a cabeça.

— Vou me juntar a vocês. — Falou com convicção, já se impulsionando para se levantar.
Kayla e o pai foram juntos até a cozinha.

— Parece melhor. — Iridia comentou sorrindo, olhando na direção do marido.

Como se tivesse ouvido um veredicto, Misael olhou para Kayla e riu antes de retrucar:

— Viu? Eu disse que estava falando a verdade.

Kayla sorriu e afagou as costas do pai antes de puxar uma cadeira para ele se sentar.

E o almoço poderia ter corrido normalmente se alguém não tivesse esmurrado a porta de repente. Todos se olharam assustados.

— Eu atendo. — Iridia falou baixo e levantou fazendo sinal para que os gêmeos ficassem em silêncio absoluto.

Quando a mãe abriu a porta, Kayla viu que o homem do lado de fora usava o uniforme do exército real. Ele entregou um envelope para Iridia e logo em seguida se retirou.

Esperando o soldado se afastar o suficiente para poder falar, Iridia voltou à mesa e disse:

— É do castelo... — Abriu o envelope. — O que será?

— Não vão prender a gente, vão? — Derek questionou.

— Não fala bobagem! – Kianne o repreendeu. — Deixa a mamãe ler.

Respirando fundo, Iridia começou a ler em voz alta:

“Todos os Receptores atuantes que residem nesta casa deverão se apresentar ao Edifício Central na data anexada abaixo. O descumprimento desta ordem resultará em punição severa.
Atenciosamente, A Família Real

— Atenciosamente? Era o mínimo depois de nos ameaçar através de uma carta! — Misael exclamou.
— Não diz mais nada? — Kayla perguntou.

Iridia fez que não com a cabeça.

— A data é para daqui dois dias. — Falou e suspirou. — Você não pode sair assim. — Referiu-se a Misael.

— Não temos escolha. Quando a Família Real manda, não temos muito o que fazer. — Ele passou a mão por cima da mesa e segurou a mão da mulher. — Eu vou ficar bem. Logo a gente volta para casa.

A doença do pai havia sido contraída quando ele teve contato com o lago Lua de Gelo, às águas mais frias de todo o reino. O complexo de herói, como Iridia costumava chamar, que o fez pular na água. Misael não conseguia ver ninguém precisando de ajuda e ficar parado. Quando o garoto caiu no lago, Misael foi atrás para poder salvá-lo. Adoeceu bastante, porém continuava firme.

Infelizmente, o garoto não teve o mesmo destino.

Isso o entristecia com frequência e Kayla via que ele tentava não transparecer. O sorriso caloroso que lançava à esposa naquele momento comprovava isso.

Kayla observou à cena por um tempo e depois desviou os olhos para os gêmeos que também estavam olhando.

Apesar de serem praticamente crianças ainda com seus treze anos, Kayla sabia que a visão de mundo deles era ampla. Sabiam dos problemas que cercavam Alathea e sempre colaboraram como podiam para deixar a família bem, nem que fosse somente fazendo graça com alguma coisa.

Um Receptor só podia exercer essa função a partir dos dezesseis anos, idade mínima para demonstrar o dom. A idade máxima era vinte e três anos. Essas regras também valiam para as outras Linhagens.

Quem não demonstrava o dom até a idade necessária, era classificado como Desconhecido e não era mais reconhecido como um residente de Camellia. Kayla nunca soube para onde eram levados e tinha até medo de descobrir.

Voltou a se concentrar no seu prato e suspirou. Em sua breve experiência, nada do que vinha daquela Família Real era boa coisa. O rei era um homem impiedoso e era temido sempre que passava por algum lugar. Até tinha as pessoas que gostavam de seu governo, mas já sabemos quem são essas pessoas: as que podiam se beneficiar com o que ganhavam do rei. E isso não era o caso de nenhum Receptor que Kayla conhecia.

 E isso não era o caso de nenhum Receptor que Kayla conhecia

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     — Bem que podiam deixar a gente ir junto. — Kianne resmungou ao lado de Kayla quando as duas se deitaram na cama. Derek já dormia profundamente na cama ao lado.


— Vocês ainda não têm dezesseis anos. — Kayla falou pacienciosa.
— Mas a gente já tem o dom... Se a gente pudesse ir, eles parariam de encher somente a mamãe, o papai e você.

— Mas nem sabemos se estão nos chamando por causa do dom dos Receptores. — Kayla retrucou, recebendo um olhar de ironia da irmã.

— Por que mais chamariam, então? — Kianne retrucou.
Kayla teve que sorrir. Não adiantava tratá-los como crianças. O que Kianne acabou de falar era um exemplo disso. Os gêmeos sempre sabiam exatamente o que se passava.

— Que tal a gente parar de pensar nisso agora e ir dormir? — Kayla questionou enquanto puxava uma coberta por cima de si e de Kianne.

As duas ficaram uma de frente para a outra se encarando com o auxílio da claridade da lua que entrava pela janela. A lua estava cheia. A lua dos Transformadores.

De repente, Kianne confessou baixinho:

— Eu não quero ser Receptora... Eu quero poder conversar com as pessoas. Tem um garoto na minha sala de aula que é Transformador e eu queria poder falar com ele.
Kayla suspirou.

— Sinto muito. — Falou por fim. Não tinha muito o que fazer em relação a isso. — Você não tem algum amigo Receptor?

— Tenho, mas só posso falar com ele quando a sala fica vazia. — Kianne respondeu com pesar.
Kayla sabia pelo que a irmã estava passando. Passou pelo mesmo em sua época de escola.
Os Receptores só podiam conversar entre si. Tanto que, até onde Kayla sabia, nenhum jamais se relacionou afetivamente com alguma pessoa que não fosse Receptora. Não tinham permissão de falar livremente com outras Linhagens.

— Pode convidar seu amigo para vir aqui em casa te visitar. Mamãe e papai vão ficar felizes. — Kayla incentivou.

A irmã deu um sorriso fraco.

—  Acho que vou fazer isso... — Kianne bocejou logo depois de falar. Kayla afagou seus cabelos. — Canta para mim... — Pediu.

Kayla sorriu. Limpou a garganta e logo fez o que a irmã pediu:

O urso no bosque
O lobo na colina
O som que te espanta
A imagem que fascina.

O cavalo no campo
Correndo sem parar
Sem poder prever
Aonde vai chegar.

Escute a minha voz
Falando para ficar
Feche o olho então
Para enfim poder sonhar.

Não chegou a se passar dois minutos e Kianne já se encontrava em sono profundo. Kayla afagou mais uma vez os cabelos da irmã, sussurrando um boa noite minha princesa e se virou de barriga para cima.

Muitas noites flagrava a si mesma pensando em mil questionamentos do porquê certas coisas serem como são. Não era uma Historiadora, então não saberia dizer, mas se perguntava se foi assim à vida toda. Quer dizer, desde os primórdios, os Receptores são “excluídos” dessa maneira? Ou em algum momento foi diferente? Duvidava muito disso. As pessoas usavam o dom de um Receptor para resolver alguns de seus problemas, mas é óbvio que não iriam querer correr o risco de terem seus segredos espalhados. Manter essa Linhagem em silêncio era a melhor forma de tudo ficar nos eixos.

Por um instante, sua mente viajou até a carta que receberam mais cedo. Kayla nutria o mesmo sentimento que a mãe e o pai pela Família Real: desprezo. E receber uma convocação assim, sem mais nem menos, só aumentou ainda mais esse sentimento.

Resolveu que seguiria o conselho que dera para a irmã: que tal parar de pensar nisso agora e ir dormir?

E foi isso que fez.

Linhagens da LuaOnde histórias criam vida. Descubra agora