estomago vacio

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A fome era algo que nos perseguia desde o primeiro dia. E com o frio, parecia que o vazio de dentro de nós era ainda mais doloroso do que poderia ser no calor.

O leite em pó acumulado no nosso céu da boca era quase como um lembrete do que era uma bala ou uma goma em dias melhores como aqueles que estávamos vivendo. Dias mais quentes e tranquilos.

Alan se sentou em frente a mim e Guadalupe, quando a maioria saiu para ver o sol. Guadalupe evitava olhar para ele, mas eu continuava firme. Eu não queria ser pega de surpresa. Eu não queria ser um cervo para o caçador.

Gringo tinha seus dentes separados e lábios pálidos. Fiapos de barba agora apareciam em seu rosto.

- Parecem confortáveis...

- Vai pro inferno - Respondi prontamente.

- Já estou nele e inclusive, estou disposto a abraçar o capeta - Ele esticou suas pernas, batendo na sola do meu pé.

Vitorino, o projeto de psicólogo, olhava de canto para Alan. Quase querendo mandar o outro loiro calar a boca, mas mesmo irritado, queria ver até onde o outro iria. Parecia que ele vivia em uma eterna análise psicológica e por incrível que pareça, se divertia com isso. Era assim que deveríamos nos sentir quando amamos uma profissão?

- O que você quer? - Guadalupe olhou para o homem. Alan deu um risinho. Ele se levantou e deu um chute fraco novamente na sola do meu pé.

Ele passou por Vitorino gargalhando.

Guadalupe olhou para mim com olhos arregalados.

- Ele tá com estresse pós-traumático - Vitorino suspirou sentando ao nosso lado - Cada caso é um caso, mas Alan tá dissociando.

- E por que o outro não tá assim? Ou pior, todos nós?

- Cada um lida com seu trauma de uma forma - Vitorino disse - Enrico lida cuidando do físico das pessoas, eu conversando com as pessoas, Bibo dormindo no sol, Ricardo cuidando de Malena...

- Cada um de seu jeito - Guadalupe suspirou. Parecendo perder a paciência.

Não era muito fácil se manter paciente com fome e frio. Com vontade de tomar um banho quente e dormir de barriga cheia. De esquecer que os últimos dias existiram ou de fingir que tudo era uma mera pegadinha de muito mal gosto da companhia aérea.

Eu saí dali, eu precisava de comida. Precisava urgentemente.

A luz do dia refletindo na neve era cegante, mas mesmo assim, apertando meus olhos, procurei alguma forma de vida sem ser os sobreviventes.

Nenhuma árvore, sequer grama. Nada. Apenas neve, metal e pessoas.

Muitas pessoas. Pessoas mortas. Carne.

Olhei para o cemitério a céu aberto.

- Não... Eu não posso enlouquecer - Falei trêmula, percebendo que meus sentidos já não respondiam por mim. Olhei para as pessoas em volta pegando sol, conversando... E eu ali. Me aproximando mais e mais para onde as pessoas estavam enterradas.

Havia uma voz dentro de mim que dizia que ali não eram mais pessoas, mas sim corpos. Que se estivessem vivos, lutariam para sobreviver. Pessoas que como Gringo, talvez nem me enxergariam como pessoa.

Voltei a olhar para o restante das pessoas vivas. 

Minha garganta secou, mas pigarreei. Tentando puxar forças para externalizar aqueles pensamentos terríveis, mas que eram necessários ao meu ver. Alguém deveria falar. Mas como falar? E se me matarem por puro medo? Me isolarem?

Comecei a pensar em cada bife que rejeitei, grão de arroz que deixei cair no chão, água pura que virei nesses vinte e poucos anos.

Aquilo me doía tanto, ao ponto de causar vergonha em mim.

Deus que me perdoe.

- Precisamos comer - Falei de repente. Minha voz saiu mais forte do que o necessário. Um apelo desesperado por compreensão.

- Pode preparar o almoço, o que acha de almôndegas? - Bibo disse brincando, dando uma risada triste.

- Uns bifes a milanesa, quem sabe?

- Vai querer um arrozinho, madame? - disse outro debochando. Minha cabeça estava tão fraca que eu olhava para eles e seus nomes eram completamente esquecidos. Eu não estava funcionando bem - Um molhinho de tomate?

Malena estava deitada na neve ao lado de seu pai, que me olhava preocupado. Qual era mesmo o nome dele?

- Vocês acham mesmo que depois de quatro dias comendo leite em pó como se fosse bala, fumando essas merdas de cigarro como chaminés e mijando preto, nós vamos sobreviver! - Elevei o tom, calando a boca dos homens. - Que merda tá acontecendo com vocês?

Um silêncio absoluto.

- Estamos aqui há sei lá quanto tempo... Essa hora, pararam as buscas por conta da neve - Bati minhas mãos nas minhas coxas - Estamos desnutrindo e desidratando... E se quiserem viver por mais um tempo para que a neve seja descongelada ou que alguém tenha culhões de subir essa montanha, precisamos comer!

- Como espera que comamos nossos amigos? Como espera que a minha filha coma... - O pai de Malena se levantou do chão indo pra cima de mim. Sem medo, virei minha atenção pra ele.

- Da mesma forma que os adultos comerão - Caminhei até ele - Ou vai deixar ela definhar?

O treinador se encolheu.

- Eu não vou morrer sem tentar sobreviver - Guadalupe saiu do avião, ela estava abraçada em uma das cobertas.

Olhei em volta. 

- Se tiver alguém contra, que guarde seu falso moralismo para si mesmo e morra com ele - Caminhei em direção a alguns metais que estavam curvados e em estado pendulo. Arranquei com dificuldades por conta da força. Ou falta dela.

- Aruna! - Alguém me chamou, mas não ouvi. Ou pelo menos, ignorei. Se eu não utilizasse esse pico de coragem, eu nunca iria conseguir sair de lá. Pelo menos não viva. Guadalupe segurou a pessoa que tentava vir até mim. 

Quando cheguei no cemitério, suspirei pesadamente. Meus olhos passaram de forma aleatória pelas carnes. Eram somente carnes agora, tinham que ser. Tapei a cabeça do corpo com neve e com mãos tremulas, rasguei um pedaço da carne nua. Coxa.

Uma ânsia tomou conta de mim, um nojo. Não da carne em si, mas de mim. Do líquido vermelho congelado. Um som saiu da minha garganta, quase dolorido, um choro agoniado em desespero e nojo. Ao conseguir tirar uma lasca com o metal afiado, aproximei dos meus lábios. Não mastiguei por muitas vezes. Simplesmente engoli. 

Olhei para trás e vi Gringo me olhando. Ele se aproximou de mim.

- Não somos tão diferentes - Ele se ajoelhou em frente ao corpo, fez o sinal da cruz e pegou o pedaço de metal, arrancando mais um pedaço de carne. O estado de choque dele era diferente, como se estivesse envolto por adrenalina o tempo inteiro. Ele mastigou, sentiu o gosto da carne e deu um suspiro aliviado. Parecia sentir prazer. Como se aquela carne fosse um churrasco de domingo.

Me pus de pé e me afastando dele. Limpei minha boca e voltei para o outro lado do avião. Todos me olhavam, julgosos. Menos Guadalupe. Sem os olhar por muito tempo, me recolhi para o mesmo lugar de sempre

Como ter sanidade depois disso?

Me encolhi e de forma tensa, tentei dormir novamente. Mas nada. A saciedade não me consumiu, mas sim a sensação de querer vomitar pelo nojo do gosto e de mim mesma.

Guadalupe se sentou ao meu lado.

– Gringo é o açougueiro – Ela sussurrou – Está alimentando os outros.

Não conseguiu responder. Eu olhava fixamente para o chão.

– Será que tudo isso vai valer a pena? – Perguntei para Guadalupe. Ela balançou os ombros.

– Se não tentarmos como vamos saber?

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⏰ Última atualização: Sep 01 ⏰

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