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ELISA
Montevideu.


Minha avó se foi.
A única pessoa que ainda me restava nesse mundo havia partido. Aparentemente, ela não sofreu, apenas fez a sua passagem enquanto dormia, aos seus 84 anos.
Infartou.

Eu preciso ficar bem.

Acaricio sua mão gélida dentro do caixão, tentando segurar as minhas lágrimas. Vovó Margaret sempre detestou que eu chorasse, sempre me dizia que se for para chorar, que seja de alegria.

Sentirei falta dos seus conselhos, da sua risada, do seu abraço e do seu perfume. Será estranho retornar para casa depois de um dia cheio na livraria e não escutá-la cantarolar algumas de suas músicas favoritas ou vê-la preparar seus paezinhos de canela.

Vovó Margaret me acolheu quando eu tinha 15 anos, logo após meus pais sofrerem um acidente de carro.
Meu pai, Fernando, era seu único filho e eu era sua única neta.
Desde então, éramos uma pela outra. E Enzo.

Ela tinha um enorme carinho por ele, dizia que se davam bem, pelo fato de sua alma ser tão velha quanto à dela. Uma alma velha, livre e sonhadora.

Ele já se foi. E agora me despeço dela.

Sinto uma mão tocar delicadamente meu ombro, me tirando dos meus pensamentos.

- Elisa, querida. - Viviana força um sorriso tímido.- Está na hora do enterro.

Balanço a cabeça positivamente  e encaro pela a última vez o rosto da minha avó.

" Você o ama e um dia vai entender que isso basta."

- Obrigada por tudo Vovó.- me afasto do caixão, enquanto observo os dois agentes funerários fecharem o caixão.

- Não fica triste, tia Lisa. - Sarah, filha de Viviana, segura minha mão delicadamente e eu forço um sorriso. - Vovó Margaret já é uma estrelinha que vai cuidar da gente lá do céu.

- Vai sim meu amor.

- Vamos querida. Meus pais estão ali fora, só falta a gente.

Caminhamos para fora da pequena capela e do lado de fora, próxima à cova que minha avó será enterrada, vejo uma pequena multidão se formando, alguns rostos são conhecidos da Comédia Nacional, outros amigos próximos, juntos à família Vogrincic.

Mas eu não estava preparada para vê-lo tão próximo de mim depois de tanto tempo e em uma situação dessas.

Seu olhar encontra o meu, percebo seu rosto abatido, com olheiras profundas e os olhos vermelhos. Sinto meu coração acelerar.

Tudo que vivemos parece ao mesmo tempo tão recente e tão distante. 

A minha vontade é  de correr e acabar com a pouca distância que nos separa e dizer que eu preciso dele mais do que nunca. Que não quero ele longe de mim, nem por mais um minuto sequer.

- Elisa.- ele quebra o silêncio se aproximando lentamente de mim. - Eu sinto muito. Viviana me avisou e eu vim o mais rápido que eu pude.

- Obrigada por ter vindo, Enzo. - forço um sorriso sem graça, sentindo o meu coração cada vez mais acelerado. - Sabe muito bem o quanto ela gostava de você.

- Eu também gostava muito dela. Era como se fosse a minha avó também.

O silêncio constrangedor se forma entre nós. Aproveito que algumas pessoas vieram me cumprimentar e me afasto de Enzo.

Sua presença me deixa inebriada, principalmente quando seu perfume penetra em minhas narinas.

Droga!

Mesmo depois de dois anos, eu ainda não consegui superá-lo.

"- Margaret, eu gosto muito da Elisa. Muito mesmo. - ele sorri para mim, sentado ao meu lado no sofá da minha casa.

- Aposto que ela também gosta bastante de você, não é mesmo querida?- ela se aproxima do seu toca disco e mais uma vez a voz de Jeff Buckley  invade o ambiente.

- É sim Vovó. - sinto as minhas bochechas esquentaram ao admitir isso.

- Seja o que vocês decidirem ter, tem meu total apoio. "

*

Três dias haviam se passado desde o enterro da minha avó e decido começar a separar as suas coisas.

São inúmeros livros, discos, roupas e fotografias. Eu teria uma grande tarefa pela frente.

Suspiro.

Pego um cigarro e acendo. Às vezes apenas isso me acalma.

Me sinto mais sozinha do que nunca. Tive que me despedir dos meu pais, depois de Enzo e agora da minha avó.

Vasculhando uma de suas caixas, encontro a sua antiga máquina fotográfica. Ela adorava fotografar, herdei um pouco dessa paixão, porém acabei deixando esse hobby de lado depois de entrar na faculdade de administração. O tempo passou, me formei e hoje sou gerente de uma livraria no centro de Montevideu.

Ouço a campanhaia tocar e nem me preocupo em apagar o cigarro, e quase caio para trás, ao avistar o visitante surpresa.

- Isso ainda vai te matar, chiquita.- Enzo falou antes de soltar o seu sorriso ladino.

- Ou me deixar mais forte, Vogrincic. - suspirei. - O que você está fazendo aqui?- pergunte me encostando no batente da porta, cruzando os braços.

- Vim te ver. - ele dá de ombros, sorrindo mais uma vez. - Saber se você está bem ou precisando de ajuda em alguma coisa. Essas coisas que amigos fazem. Posso entrar?

Liberei a sua passagem, batendo a porta logo em seguida.

- Não somos amigos, Enzo. - mordi timidamente o lábio. - Não mais.

Ele me encarava sem graça, enquanto se sentava no sofá.

- Se desarma um pouco. - seu tom de voz era calmo, até um pouco cansado.- acho que precisamos entender por que estamos nessa situação, chiquita.

Havia várias coisas que eu queria dizer, até mesmo queria xingá-lo. Queria me mostrar como uma pessoa forte em sua frente, porém, ele me conhecia mais do que a mim mesma.

Sem pensar duas vezes, me sentei ao seu lado no sofá e o puxei para um abraço, sentindo seu cheiro me invadir mais uma vez.

E o mundo parecia parar. Era como se ele nunca tivesse ido embora, era como se eu ainda fosse a sua namorada de tantos anos. E tudo parecia tão certo e calmo novamente.

- Não imagina o quanto eu senti falta disso,  Elisa. - ele sussurrou antes de me afastar e depositar um beijo em minha testa.

- Eu também senti a sua falta, Vogrincic. - suspirei, enquanto acariciava delicadamente a sua bochecha.- Muita.

Cinnamon GirlOnde histórias criam vida. Descubra agora