Dorme, dorme, noite afora,
Pequenino sob o luar.
Na floresta, onde se mora,
Borboleta vem te ninar.
Flor a flor, leve a voar,
Mãe beija-flor já vem buscar.
No céu azul, alto lugar,
Com ela vais brincar.
Em cada flor, segredo está,
De amor, de luz, a brilhar.
Dorme, dorme, sem chorar,
No sonho, mãe vai te levar.
Xainã cantarolava baixinho essa antiga cantiga a seu curumim, uma canção que sua mãe lhe cantava, repleta de memórias e significados. Ela contava a lenda do beija-flor, ave que também dava seu nome "Xainã" em sua língua nativa, era uma espécie de reconexão com seu povo da montanha que não queria esquecer. Desde quando se casou com o líder do povo das águas ela não pôde mais visitar o seu povo no alto da montanha.
As mãos da mãe, trêmulas pela emoção do momento, envolviam o pequeno com delicadeza em mantas feitas da fibra mais macia da floresta, formando uma barreira contra a brisa que vinha das águas logo ali perto e se infiltrava na gruta trazendo um leve frescor.
Os olhinhos do bebê, escuros como a noite sem lua, observavam a mãe como se conseguia entender o que sua mãe cantarolava, enquanto as pequenas mãos se estendiam para tocar as penas coloridas do colar que a mãe usava. O indiozinho, com apenas dez luas desde que viera ao mundo, tinha um choro raro, como se compreendesse a solenidade de seu nascimento em tempos de aliança.
Eles ainda estavam na gruta das mulheres, esculpida pela natureza na rocha viva, um santuário sagrado onde as mulheres da aldeia compartilhavam os momentos mais íntimos de suas vidas. As paredes de pedra, alisadas pelo uso de várias gerações, guardavam a força das mulheres. O chão era forrado com a palha verde de palmeiras, trazendo aconchego e calor, e tochas iluminavam o lugar, mostrando desenhos antigos nas paredes.
O ar na gruta era fresco, mas graças às águas termais que corriam secretamente por fissuras subterrâneas, criava um ambiente perfeito para a cura e o renascimento. O aroma de ervas medicinais penduradas para secar misturava-se com o musgo e a terra úmida, formando um perfume que era ao mesmo tempo revitalizante e calmante.
Neste refúgio, Xainã se encontrava rodeada pela sabedoria das outras mulheres. Era aqui que elas se reuniam durante o ciclo da lua, tecendo juntas a tapeçaria da vida com os fios de suas experiências. E foi aqui que Xainã, sob a orientação amorosa de Puwani, deu à luz seu filho, ao som suave e constante da água que fluía, lembrando-a da presença incessante da sua nova casa. Ywara, o povo das águas.
Xainã, ainda se recuperando do parto, sentia-se como a própria terra revigorada pela chuva. Ela sentia uma esperança pela jornada que se aproximava, a revisitação ao seu povo natal, os valentes Ayates das montanhas. A lembrança do dia em que deixou seu lar para se unir à aldeia da água ainda estava presente em seu coração como uma chama inacabável.
Pareceu que foi ontem o seu momento de transição. Xainã sentiu o fluxo da vida deixar seu corpo por suas pernas como um rio que parte da nascente para encontrar o mar. Era um adeus silencioso da infância e um acolhimento ao novo ciclo que se iniciava. Ela se recordava da jornada que a trouxe até ali. Para se chegar à caverna dos Ywaras, era preciso descer de canoa pelo rio, até chegar no cume de uma cachoeira e depois teria que pular dali mesmo para alcançar o santuário oculto dos Ywaras. Seria uma descida para a morte? Ela pensava bastante. Aos poucos, o medo que sentia se transformou em coragem, pois sabia que a cada passo que dava era um verso da canção do seu destino.
- Não cubra ele todo! - gritou a ama Puwani, que era ao mesmo tempo firme como uma líder e carinhosa como uma mãe com todos. - É preciso que o camarãozinho sinta a friagem para que possa se acostumar com o nosso lar. Se ele não sentir a friagem em seu peito, não ficará forte para ser um Ywara, - ela brincou, provocando uma onda de risos entre as outras mulheres.
Xainã, apesar de achar estranho, respeitou a tradição. Em sua terra natal, nas montanhas gélidas, aconchegar-se em peles de animais e reunir-se perto da fogueira eram práticas comuns para combater o frio cortante. Mas ali, próximo ao rio, o frio era de outro tipo, um que ela ainda estava aprendendo a entender. E seu curumim, destinado a ser um Ywara, deveria se adaptar a isso.
Puwani, a líder da cabana, era mais do que uma ama; ela era a guardiã dos rituais e sabedorias femininas da tribo. A cabana servia como refúgio para as mulheres durante os momentos sagrados de transição: era lá que se recolhiam durante o tempo de sangria da lua às moças novas e também onde o milagre do nascimento era recebido pelas mãos experientes das mulheres sábias. Foi Puwani quem preparou a água morna e assistiu Xainã durante seu parto, dando-lhe conforto e segurança naquele momento de vulnerabilidade. A gratidão de Xainã por Puwani era profunda, por seus conselhos e pelo acolhimento que tinha recebido desde que tinha chegado na tribo.
Wayin, a filha desastrada de Puwani, mas de bom coração, compartilhava uma amizade especial com Xainã. Ela recordava o dia em que encontrou Wayin mexendo em suas caixinhas de artefatos preciosos, onde ela guardava as memórias de seu povo e de sua mãe. Entre esses tesouros estava uma peça adornada com penas, uma grande lembrança da mãe que Xainã perdera tão cedo. Apesar de às vezes se irritar com a curiosidade invasiva de Wayin, Xainã reconhecia nela uma inocência e um desejo genuíno de aprender e conhecer sobre o seu antigo povo da montanha.
"Eu aspiro que seu curumim seja um grande guerreiro, um exímio nadador e sabedor de todos os mistérios dos espíritos bons do fundo do rio! Que a mãe Yara lhe saúde com grande honra!" desejou Wayin para o filho de Xainã. As palavras ecoaram no coração de Xainã, trazendo a lembrança de sua própria mãe. Ela se viu de volta às montanhas, correndo pelos campos de milho, sua risada se misturando ao sussurro do vento. Recordou-se, com um misto de alegria e saudade, dos dias em que ajudava sua mãe na colheita, das histórias contadas ao entardecer, das canções que entoavam juntas. E então, o dia em que a tragédia a silenciou. Procurando sua mãe entre os milharais, encontrou-a adormecida, um sono eterno induzido pelo veneno de uma serpente, marcado pelas duas pequenas perfurações em seu calcanhar.
Abraçando seu filho, Xainã chorou não apenas pela mãe que perdera, mas também pela promessa de amor incondicional que fazia ao seu curumim, ele era a figura mais próxima que tinha naquele momento. Em meio às lágrimas, um juramento silencioso foi formado: ser para seu filho o porto seguro, o amor inabalável que sua mãe fora para ela. Naquele momento, unidas pelas gerações, as almas de mãe e filha entrelaçavam-se numa promessa eterna de cuidado, amor e memória.
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Pássaro sob as águas (Bird under the waters)
Fantasy"Em 'Pássaro sob as águas', somos levados pela história de Xainã, uma mulher indígena do alto das montanhas geladas, agora vivendo junto ao mundo fluido do povo Ywara, onde águas e tradições correm profundamente. Ao dar à luz em terras estrangeiras...