Jantámos o mais longe que conseguimos da sede, algures a meio caminho para as nossas respetivas casas. Entre postas de dourada, sangria e bolo de bolacha, ambos reconhecemos estar metidos numa alhada monumental. Poderíamos ter conseguido adulterar o relatório para as chefias, mas tínhamos ganho a atenção indesejada da graxista de serviço e de todos aqueles que bebiam das suas palavras como se de água benta se tratasse.
Por isso, ambos reconhecemos que a fachada de uma relação deveria continuar de pé, pelo menos durante algum tempo.
Depois de estabelecermos as regras daquele disfarce, começámos a espalhar migalhas no trabalho. Almoços sempre em conjunto, abraços pouco discretos, segredinhos e beijos lançados ao ar, demonstrações de afeto calculadas até ao último milímetro. Por vezes saíamos juntos no fim do expediente, à vista de todos, para ir beber café num estabelecimento não muito longe da sede. Tínhamos de manter o clube de fofoqueiras residentes satisfeito com o que via ao mesmo tempo que pintávamos uma imagem credível de uma relação amorosa entre duas pessoas naturalmente discretas. Tudo o que se poderia achar incaracterístico da nossa parte deveria vir exclusivamente de momentos de paixão fingida que, esperávamos nós, não durasse muito.
O ponto crítico da farsa seria a gala anual da empresa. Precisávamos de testemunhas para os problemas no nosso paraíso imaginário para conseguirmos deixar de estar conectados por uma mentira de circunstância.
Por causa da ameaça de mau tempo, fui buscá-lo à porta da casa que ainda dividia com os pais. Benjamin só possuía uma mota desde que tirara a carta e o primo tinha levado o carro dos pais dele emprestado, pelo que se não viesse de boleia comigo, ou nunca mais lá chegava nos transportes públicos ou arriscava-se a chegar a casa ensopado.
A senhora do segundo andar estava à janela a acenar quando estacionei na praceta. Acenei-lhe de volta, mas quando olhei para cima depois do Benji entrar no carro, a mulher tinha desaparecido entre as cortinas.
— Pronta, amor?
— Para acabar contigo? — Deitei-lhe a língua de fora ao colocar a primeira mudança. — Mal posso esperar!
— Ainda não decidimos quem é que termina com quem! — barafustou, divertido.
Quando iniciámos aquele teatro, iniciámos também uma amizade bastante cúmplice. Passar por uma situação de perigo com alguém — ainda que ali fosse apenas à nossa carreira — tinha o poder da aproximação. Além disso, a partilha de detalhes das nossas vidas privadas era útil para manter as coisas credíveis e era mais fácil mentir em conjunto se houvesse boa química entre nós.
A gala decorreu no hotel de sempre. Tínhamos o piso inteiro reservado para a farmacêutica, com bebida e comida à discrição, e o palco montado para as atuações ao vivo dos artistas contratados. Era a altura perfeita para os membros de todos os departamentos interagirem e se divertirem. Mesmo assim, o clima estava tenso e não demorámos muito a perceber porquê: havia uma corrida à patente da fórmula na qual a empresa trabalhava há meses em segredo. O espião tinha partilhado de novo informação confidencial e agora o processo de registo de patente tinha ido parar à justiça para se resolver aquele conflito.
— A Samara e o Benjamin estão nesse projeto, não estão? — perguntaram para o ar. — Não os tinhas apanhado a segredar no laboratório, Miriam?
Todos os olhos das proximidades se voltaram para nós. Gelámos. Apertei-lhe a mão livre com a minha. Trocámos um olhar entendedor. Eu assenti brevemente, antes de encarar os espectadores daquela insinuação com o meu melhor sorriso de atendimento ao cliente.
Os problemas no paraíso podiam esperar.
— Não era assim que queríamos que soubessem de nós, mas acho que não nos resta outra opção, Benji.
Ele abraçou-me por trás, a sua camisa social a roçar no meu vestido. A multidão soltou pequenos arquejos e sussurros coscuvilheiros.
— Para os que ainda não sabem, estamos a namorar, pessoal — anunciou o Benji, para espanto de várias pessoas. — Tentámos manter as coisas em segredo para não levantar ondas, mas a Miriam acabou por nos apanhar juntos no laboratório...
Sentindo que a audiência precisava de acreditar na mentira, agarrei uma das mãos que Benji tinha na minha cintura. Entrelacei os nossos dedos, a minha palma com as costas da sua mão, antes de puxar ambas para cima. Ele não ofereceu resistência, nem quando virei o interior do seu pulso na minha direção, depositando-lhe um beijo demorado. Em resposta, ele arranjou espaço entre os nossos corpos. O seu nariz roçou suavemente o meu pescoço exposto, brincalhão, antes dos dentes me mordiscarem a pele abaixo da linha da mandíbula, sendo substituídos pelos seus lábios.
Quando por fim me afastou, fazendo-me girar perante a multidão como se dançássemos, eu tinha o coração aos saltos e o equilíbrio instável.
— Não gosto de dar nas vistas, mas agora já vai tarde — lamentei, tanto para a audiência como para ele.
A encenação teve o efeito desejado. As pessoas da empresa que não sabiam da nossa "relação" vieram dar-nos os parabéns e tentar pescar um pouco mais de informação antes da novidade passar. Miriam foi deixada sozinha e as suspeitas de espionagem que tinham recaído sobre nós foram desviadas até eventualmente se perderem entre as barrigas cheias, o álcool e a música ao vivo.
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Até que o coração descubra
Kurzgeschichtenᴄᴏɴᴛᴏ ᴇꜱᴄʀɪᴛᴏ ᴘᴀʀᴀ ᴏ ᴅᴇꜱᴀꜰɪᴏ 28 ᴅᴏ ᴘᴇʀꜰɪʟ ʀᴏᴍᴀɴᴄᴇʟᴘ ꜱᴏʙʀᴇ ᴜᴍ "ᴀᴍᴏʀ ᴅᴇ ᴍᴇɴᴛɪʀɪɴʜᴀ" As mentiras têm peso próprio. Muitas fazem-se sentir em partes do corpo que pouco ou nada afetam os mentirosos. Algumas pesam na cabeça, obrigando o farsante a um esf...