04. Ao que sinto no presente

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— Mara!

Giro a cabeça para o encontrar a caminhar para mim sobre os paralelepípedos no chão. A juba castanha onde gosto de passar as mãos vem a balançar ao vento, as covinhas que surgem nas bochechas quando me sorri a rematar a beleza masculina de Benjamin.

Porque é que tudo tinha de dar errado? Porque é que a curiosidade e excitação da minha primeira relação romântica tinham de se esfumar?

Ser a única a saber a verdade, a antecipar o desastre iminente, dá-me azia.

Aceno-lhe. Ele aproxima-se e cumprimenta-me. Depois pousa a mochila e o capacete da mota no chão para se ajoelhar diante do banco de jardim onde estou sentada, como nos filmes românticos que gostamos de ver. As suas mãos envolvem a minha cintura, a cabeça a repousar sobre o meu colo, quase com o seu ouvido direito encostado ao meu ventre. Quem nos visse, pensaria que ele procurava escutar um filho nosso. Estamos quase na "idade certa" para ter o primeiro.

— Benji?

— Deixa-me falar, Samara. O que eu te queria contar hoje é que te amo — confessa, alto o suficiente para atrair olhares curiosos. Ainda com a cabeça no meu colo, os seus braços apertam-me mais contra si. — Aquilo que começou por ser só uma desculpa, um escape, acabou por me consumir inteiro. Seria louco se, depois de conhecer uma mulher como tu, não me apaixonasse perdidamente.

Olho em volta, vergonha a queimar-me da base do pescoço à ponta das orelhas. Lágrimas incipientes embaciam-me a vista. Posso já sentir o peso, o aperto, o desconforto e ainda não o olhei nos olhos. Ainda não lhe disse o que ensaiei mil vezes na cabeça durante a viagem até aqui.

Agarro-o pelos ombros, afastando-o. Ele parece confuso.

— D-desculpa-me, Benji... Eu queria fazer isto funcionar! Por mim e por ti. Por nós. Mas não consigo. Não consigo — friso, com lágrimas a correr pelo rosto como se estivessem a acabar comigo e não o contrário. Como se me estivessem a despedaçar o coração em vez de ser eu a fazê-lo.

— Mara...

As suas mãos tentam alcançar-me, como se o seu toque pudesse adiar o inevitável. Como se um afagar do meu rosto conseguisse dissipar todas as dúvidas que originaram aquele momento duro e constrangedor.

— Precisas de tempo, é isso?

— Não, Benjamin — digo, a voz de novo firme. Ele surpreende-se pelo uso do seu nome em vez do diminutivo. — Eu preciso que acabemos. Eu preciso desmanchar esta mentira que contámos a todos. Que eu te contei a ti e a mim própria.

— Mas já ultrapassamos isso, Mara. Sim, começámos com uma relação de aparências, mas tínhamos decidido dar o próximo passo. Torná-la verdadeira.

— Benjamin...

— Mas a transição deve ter sido muito abrupta — continua, mergulhado no seu devaneio. — Eu percebo, não te preocupes. Posso te dar espaço. E tempo. Sem pressão. Podes digerir isto tudo e depois, quando achares que estás pront-

— EU SINTO-ME A SUFOCAR!

Quando percebo que gritei, é tarde demais. Cabeças disparam na nossa direção, como caça que se ergue dos arbustos com o tiro de caçadeira, em busca de perigo.

Pego nas minhas coisas e afasto-me daquele banco de jardim, confiante que ele me seguirá. Não quero dar mais espetáculo do que aquele que já demos e induzir transeuntes em erro com a minha expressão meio metafórica.

Avanço em passo apressado, tentando controlar o choro e evitar bons samaritanos preocupados enquanto me dirijo à ponta oposta do parque. Encontro um recanto na folhagem, um banco escondido numa porção abandonada do jardim, e desabo na estrutura, sem me importar com o casal de adolescentes que se dirigia para ali também. Eles dão meia volta, resignados a procurar outro lugar igualmente isolado para namorar.

Ao fim de uns instantes, Benjamin retorna. Está branco como cal. Os dedos apertam a alça da mochila e o capacete da mota com uma força desmedida, os bíceps tonificados no bouldering em tensão, como se aqueles dois objetos fossem o salva-vidas que o impediam de afogar naquele instante.

— Sentes-te a sufocar...? — questiona, adiantando-se à coragem que eu estava a reunir para terminar o que comecei.

Deixo o olhar cair no meu colo.

— Sim... Eu sinto-me bem quando estou contigo, mas... A tua necessidade de falar todos os dias, de sair a toda a hora, de estarmos sempre juntos... Quando despejas os teus sentimentos em cima de mim à procura, e com todo o direito, que eu te retribua genuinamente... Eu tentei. A sério que tentei! Mas percebi que não consigo, Benjamin. Que tudo isso me sufoca e que não é suposto.

Paro, ordenando as palavras na minha cabeça antes de as verbalizar.

— Percebi que jamais me irei apaixonar, seja por ti, seja por outra pessoa. O que eu tinha era curiosidade. Vontade de entender o que é ser amada romanticamente, o que é estar numa relação a dois. Mas cheguei à conclusão... que eu continuo a gostar de romance, desde que não me envolva a mim.

Respiro fundo, puxando ar e coragem. Sei que estou prestes a desferir o golpe derradeiro, aquele que me libertará de tudo, mas isso não torna o momento menos agonizante.

— Percebi que sou arromântica, Benji. Aroace, na verdade.

Levanto os olhos pela primeira vez no meu monólogo. Apesar da dor gritante, a expressão dele é uma amálgama conflituosa, como se não soubesse se quer chorar, gritar ou esmurrar qualquer coisa. Talvez queira tudo ao mesmo tempo.

— Desculpa. Desculpa-me... Eu sei que sou uma cabra por fazer isto contigo, por te enrolar tanto tempo em algo que sabia estar condenado apesar de não o querer reconhecer...

A mão da mochila agarra o queixo, tapando a boca. Ele olha para o lado, pensativo, a mão ainda a esconder os lábios provavelmente tensos. Depois esta sobe para os cabelos, desalinhando o caos irremediável ao descer até à nuca.

As suas íris verde-acastanhadas encontram-me de relance, antes dele se decidir a virar-me costas sem uma palavra.

Sei que isto chegou ao fim. E, paradoxalmente ao peso que tenho no peito por ter destruído a sua felicidade, sinto-me leve. 

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Até que o coração descubraOnde histórias criam vida. Descubra agora