Shot Glass of Tears

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O frio da chuva caindo sob a minha cabeça está congelante. O escuro noturno cega os meus olhos, mas continuo andando sem destino. Meu corpo trôpego está machucado, percebo escoriações pela pele. E, em alguns pontos, o sangue pinga. Não me lembro onde me machuquei, mas não sinto dor. Não sinto nada, na verdade. Tudo em mim está anestesiado. Como se eu tivesse injetado uma dose eficaz de calmante. Às vezes é difícil respirar. Contudo, continuo andando, continuo avançando até chegar ao meu destino, o qual ainda não decidi qual é. Talvez eu nem saiba até eu disser a mim mesmo o lugar que devo parar.

Eu tenho me sentido assim há tanto tempo. Perdido em mim mesmo, desligado ao que acontece ao redor e focado somente no que acontece por dentro. Tem dias que nem lembro que dia é hoje,  ou se o ricaço do bairro construiu mais um prédio novo. Quando o novo vizinho  se mudou e já tem rostos novos circulando pelo corredor? Faz muito tempo. Nem me dei conta. É assim que a vida passa. Você mal pisca e novos ciclos surgem.  Isso é bom ou ruim? Seja como for, eu não consigo mais acompanhar as mudanças.

Ando alguns passos e encontro meu carro estacionado, abandonado, próximo a um contêiner. Não encontro as chaves no meu bolso, mas tenho certeza de que a porta está aberta. Confirmo assim que puxo a alavanca. As chaves está conectada a ignição, bem no lugar onde deixei. Gosto de ser prático. Assim, as coisas funcionam como eu preciso.

Dou partida e arranco com o carro em qualquer direção. Não importa, contanto que eu saia daqui o mais rápido possível.

Quase não enxergo nada, a neblina intensa, o céu cinzento. Sem contar com as lágrimas que insistem em escorrer dos meus olhos pouco a pouco sem que eu me dê conta.

Acelero o carro, 40 km, 50 km, 60 km, 70 km, 100 km, 150 km, e continuo acelerando. Eu não consigo parar, mesmo que a chuva intensa continua a cair. Talvez esse seja o meu combustível, acelerar até encontrar o meu limite. Meu coração acelerado ao ritmo do motor, bombeia forte pelos meus ouvidos. As lágrimas intensas aumentam à medida que piso o pé no acelerador sem notar que já se esgotou.

Pensando bem sobre o que rola fora de mim, seu rosto não sai da minha mente. Seu sorriso, sua face serena e inocente. Você era durona, apesar de tudo. Não se deixava abalar por nada. Sempre foi a minha força. Olhava nos meus olhos e pedia para que eu não me preocupasse. Mas sou teimoso, você sabe, e fazia tudo ao contrário. Claro, você não percebia, eu agia pelas suas costas, sem você perceber. Na sua frente, eu sorria  e dizia bagagens aleatórias, fingindo que estava tudo bem e que eu dava conta. Saia para me divertir com os amigos e trabalhava normalmente. Mas quando a noite chegava, o pequeno copo de lágrimas enchia até a borda. Era tanta dor que eu mal conseguia respirar, e então eu voltava a focar em mim. Talvez esse seja o ponto, você fazia parte de mim, deve ser por isso que importa tanto.

Você sabia disso, não sabia? Conhecia as minhas artimanhas. Lá no fundo você compreendia o que eu sentia. Era a única. Só que agora não tenho mais isso aqui comigo. Ninguém vai segurar a minha mão, ninguém vai me abraçar quando eu sofrer. Não há uma mão quente e acolhedora que possa me consolar quando o meu corpo convulsionar de tanto chorar.

Eu não tenho mais nada, você levou tudo. Não tenho nada além de angústia e desespero. Por quê? Por que fez isso comigo? Por que me abandonou no momento em que mais precisava de você? Por que me despedaçou dessa forma e não vem mais para me consertar? Sinto um vazio. Sinto que estou em queda livre, mas ao mesmo tempo, quero voar. Preciso voar.

O pneu desliza no asfalto molhado, mas eu não desacelero. Solto um berro frustrado porque o carro não atinge a velocidade necessária. Eu preciso me libertar. Sentir que estou no controle, e pra isso, preciso perder para poder conquistar. Seu sorriso reaparece, intruso e vazio, não é hora pra isso! Você não devia estar aqui, não devia dizer o que eu devo ou não fazer. Você sempre foi uma intrometida, mas prudente. Diferente de mim. Era difícil lidar comigo, não era? Eu sempre fui oito e oitenta, nunca meio termo. Eu tinha tudo o que queria, inclusive você. Mas não tinha controle emocional, e agora, nem você.

Tarde demais! Tarde para pensar sobre o passado, sobre você, é tarde para tudo! Vida cruel, não é? Insignificante, às vezes. Mas com você tudo fazia sentido, tudo  parecia certo  e pacífico, mesmo na minha bagunça. Você tinha o dom de organizar tudo, me fazendo sentir melhor. Mas eu não sei. Não consigo ser tão bom nisso quanto você. Eu disse isso várias vezes, você nunca me escutou. Sempre levou fé em mim. Me pedia para ser forte, mas não era forte que eu queria ser, eu queria você pelo tempo que eu precisasse. Mas o meu tempo é diferente do real. Se isso é algum tipo de fraqueza, confesso que eu fui, eu sempre sou.

Os carros buzinam  ao passar por mim, buzino de volta, soltando um palavrão. Atravesso na frente de um caminhão e o pneu desliza mais uma vez cantando no asfalto. Será que eu me tornei um inconsequente? Um rebelde sem causa? Todos me dizem que era isso que eu era, mas você  dizia o contrário, mais uma vez. Será que sua fé em mim não foi exagerada? Eu acredito que sim. Você via  meu lado bom, enquanto eu só mostrava meu lado fraco. Você dizia que eu era apenas um homem ferido que precisava de amor. Bom, você me deu, deu tanto que não posso viver sem. E agora eu estou na merda, focando mais uma vez ao que acontece dentro do que fora.

Meu peito dói tanto! Meu corpo está tremendo. Às vezes sinto que estou anestesiado, mas aí  um sinal de vida me indica o quanto tudo isso é uma merda.  Eu não estou vivendo como antes, isso  só pode ser um sonho. Não, um pesadelo. É o que é.

Uma luz forte atravessa o para-brisa, não enxergo mais nada. Apenas ouço sons de buzina e meus braços voando do volante. Ajo depressa, como um reflexo  acionado no momento exato, e giro o volante para o lado, jogando o carro em direção ao canteiro. Não desmaio, consegui recuperar o controle.  Não foi uma batia de frente. O carro apenas capotou algumas vezes. Estou pendurado, mas consigo me soltar do cinto de segurança. A testa sangrando, e meu corpo inteiro doendo. Me arrasto e saio do veículo. O motorista desceu até aqui para saber se eu estou bem, mas eu não digo nada. Meu corpo físico está ferido, mas o meu interior tem ainda mais danos.

Caminho, caminho, caminho e caminho, até chegar ao Rio Han. Olho para o reflexo da água  através da ponte e me inclino sobre ela. Foi você, não foi? Você foi a responsável. A sua voz em algum lugar dentro de mim, me fez desviar, salvar a minha vida.

Eu não deveria estar vivo, eu deveria ter morrido aqui. Por que eu sempre me safo? Por que continuo respirando, enquanto você... Choro com toda a minha alma, gritando, barulhento, exprimido e desesperado. Choro como um filhote pela comida. Choro em sofrimento,  por você.

Eu não consegui chegar a tempo. Eu não consegui me aproximar o suficiente. Sua fotografia em cima daquele mármore foi demais para mim. Eu não  consegui suportar. Mesmo antes, você  deitada sob aquela cama. Eu sai correndo. Fugi outra vez. Dirigi com toda a velocidade na tentativa de escapar, mas aqui estou eu. Vivo, como você queria. Porém,  sem você. Não sei quanto tempo consigo viver desse jeito.

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⏰ Última atualização: Apr 15 ⏰

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