III - A Donzela na Janela

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A tempestade caía desenfreadamente sobre a cidade adormecida, lavando-a. Já era madrugada quando Vaggie ainda perambulava pelas ruas, com apenas um manto pesado com capuz para protegê-la do clima horrível.

Perdida. Sozinha.

Não que ela nunca tivesse experimentado tais sensações antes, só que... era mais fácil aceitá-las e acostumar-se quando se estava em alto-mar. O oceano não passava de uma imensa vastidão, desprovida de seres vivos além dos que habitam suas águas, portanto a pirata meio que tinha aceitado sua antiga situação e até que gostava dela.

Mas aí conheceu Lúcifer Morningstar, que apesar de ser um homem deveras esquisito, misterioso e um tanto medonho, tornou seus dias melhores.

Agora que cada um seguiu o próprio caminho, Vaggie estava à mercê daquele lugar estranho, e acreditava cada vez mais que seu parceiro de viagem dissera a verdade: a cidade era pavorosa, o povo era hostil - nenhuma daquelas pessoas quisera lhe ajudar direito sequer com uma informação sobre locais em que poderia se hospedar, o que não fazia sentido, visto que seu disfarce era decente o bastante para que não reconhecem-na como a fugitiva da prisão da encosta.

Desta forma, desistiu de vagar pelas ruas e parou bem diante de um ilustre edifício de pedras cor de creme, um dos únicos em que as luzes permaneciam acesas no interior. Da janela no alto, uma silhueta feminina parecia estar desenhando, com um belo gatinho preto e branco por perto.

Devagar, os olhos da pirata estreitaram-se com fascínio para a imagem tão delicada, o frio da chuva subitamente esquecido.

Por que o sentimento que esquentava seu peito aos poucos parecia ser tão... doce e familiar? Era como se algo lhe chamasse para perto da residência elegante, para perto... daquela mulher.

Ao chegar cada vez mais perto, mesmo sob o relampear dos trovões, sua visão e a mente perdida numa memória marcante tornaram-se tão claras quanto o dia: os cabelos dourados claros presos num coque frouxo que deixava algumas mechas onduladas soltas, o rosto angelical, a pele alva cor de marfim coberta por um robe vermelho rosado e macio de seda leve.

No instante em que aqueles olhos, que pareciam dourados e com íris vermelhas vistos daquela distância, expressivos iguais aos de uma boneca, encontraram-na lá embaixo na calçada, imóvel como uma estátua, Vaggie teve certeza.

Era a linda dama que a salvara da morte certa. A garota dos seus sonhos.

Ela não soube ao certo quanto tempo passou parada ali, mas foi o bastante para a donzela arregalar os olhinhos com nítida surpresa enquanto contemplava sua admiradora. De repente, ela desapareceu, e uma dupla de mordomos ruivos abriu a porta do casarão alguns instantes depois.

— Boa noite, madame! Venha, nossa senhora pediu para entrar, está chovendo muito aí fora — convidaram em uninosso, como uma dupla de gêmeos esquisitos.

Desconfiada, Vaggie arqueou a sobrancelha, hesitando por um momento antes de finalmente entrar. Ela não conseguiria refúgio melhor aquela hora da noite mesmo, não tinha outra escolha, já era um milagre receber abrigo até que a chuva passasse, talvez pudesse se hospedar ali ou pelo menos conseguir indicação de alguma estalagem decente em Londres.

Assim que atravessou as portas enormes de carvalho maciço, a pirata abriu a boca para agradecer tamanha gentileza aos rapazes, que aparentavam ser um pouco mais novos que ela, a beldade loira voltou a atravessar seu campo de visão, correndo em sua direção com o gatinho ao seu encalço, a face adoravelmente preocupada.

Agora, diante de sua presença luminosa, não restava mais dúvida alguma: porra, era ela mesmo. A razão pela qual atravessou o oceano, a primeira pessoa que mostrou solidariedade por Vaggie desde o início.

In Your Blood | RadioappleWhere stories live. Discover now