"Eu preciso saber a maldita pergunta, Sam!"
O sonho estava lá, na ponta da língua. Manter os olhos fechados ajudava a recordar. As imagens vinham em sequência lógica.
— SAMUEL, são 8h! Você vai se atrasar!
O caminho estreito se estendia mata adentro. Eles corriam, galhos arranhavam braços e pernas. Estava escuro e, de repente...
— Como assim, saber a pergunta, Kate?? Eu pensei que...
— Eu SEI o que você pensou, mas... ARGHH!
Um estalo. A garota estava ferida. Kate, minha amiga, Kate.
O sonho então dava lugar a uma lembrança distante. Sua irmã nascia em meio a fumaça e caos. Ele assistia pela TV, mas os olhos tranquilos da recém-nascida acalmavam tudo ao redor. Ela parecia alheia ao tumulto com uma serenidade invejável. Então, seu pai desaparecia.
Abriu os olhos. Olhou o relógio. "Mais cinco minutos. Ou talvez dez." "Ok. Lembrando... lembrando..." Ele se recordou de ter puxado Kate a tempo de evitar algo pior. Cascos de cavalos se aproximavam, a mata era densa. Eles rolaram para trás de uma árvore. Adiante, o barulho de um rio — ou seria uma música tocando? Não, era um rio. "Meu pai... Preciso anotar isso."
Esquecimento.
Um par de olhos castanhos escuros se abriu em direção ao teto. Com movimentos mínimos, ele pegou o celular do criado-mudo e começou a digitar o que lembrava do sonho, embora sem muito sucesso.
De repente, uma mulher com uma voz rouca e absurdamente alta invadiu o quarto sem discrição: — SÃO 7h30! Você vai se atrasar para a aula, DE NOVO. Levanta dessa cama. AGORA.
Florianópolis, Brasil. Setembro de 2012. 7h50 am
A TV na cozinha ainda estava ligada, exibindo os recentes ataques terroristas contra o consulado americano em Bengasi, Líbia. Alguns brasileiros na França davam depoimento. A mulher com voz rouca dividia sua atenção entre as notícias e a pressa de motivar os filhos a se aprontarem.
— Você sabe que eu ODEIO acordar cedo. — reclamou Sam.
— Todos odeiam, jovem, mas isso não é motivo para ficar na cama.
— Já te contei que só acordamos cedo porque...
— ... antigamente, toda sociedade era baseada em agricultura, e tínhamos que aproveitar toda a luz possível para trabalhar, sim, já ouvi umas 840 vezes. Anda logo, a sociedade não vai mudar porque você quer dormir até tarde.
— Querer é poder. E, pelo que me lembro, eu puxei isso de alguém.
— Desculpas, meras desculpas. Um erro não justifica o outro e... POR QUE ESTOU DISCUTINDO ISSO? TÁBATA, VOCÊ TAMBÉM! EU PRECISO TRABALHAR.
— Vai viajar de novo, mãe? — a menina de cabelos ondulados e olhos amendoados perguntou, arrastando-se com a mochila nas costas.
— Meu corpo está aqui, minha mente não — respondeu à mãe, com um tom blasé.
— Você sabe que sim, minha filha, mas será rápido, amanhã já estarei de volta. Sam vai cuidar de você.
— Ata, e quem cuida de Sam?
A menina suspirou, virou e foi para a sala. O gato se arrastou em seus pés, reclamando como sempre.
— Nem você sabe o que quer, não é, Bichano?
— Meu amor, tenho 50 anos e ainda não sei. Vai logo tomar seu Nescau. SAMUEL, EU NÃO VOU FALAR DE NOVO. AH NÃO, você perdeu o direito de tomar banho há 15 minutos atrás, mocinho... — a tela do celular acendeu, chamando sua atenção.
— Tudo bem, mãe, só queria saber — a menina continuou.
— Encontraram resquícios de uma nova civilização que data de antes dos Guaranis, na região do Alto Paraná e essa vai ser só um primeiro reconhecimento para planejarmos como proceder e...
— Não precisa explicar, mãe, a gente tá acostumado — uma tristeza breve passou pelo olhar de Ágata Inês, enquanto observava a filha fazendo carinho no gato. — Só não esquece que nesse final de semana é, bem...
— Teu aniversário, Tata, jamais esqueceria. São só 5 dias. Eu queria muito levar vocês junto. Mas ainda não é possível e... — o telefone de Ágata vibrou. — Olha só, mensagem da Kate, pra mim, veja você. Samuel, aparentemente você tem prova hoje e claramente não tirou o celular do "não perturbe".
Um par de olhos castanhos remelentos sob cabelos desgrenhados buscou o iPhone na escrivaninha. 268 mensagens no WhatsApp. 10 eram de Kate.
— AI DEUS. — O efeito motivador de Kate em Sam era imediato. Em seis minutos, ele estava indo em direção à porta com a mochila nas costas e a cabeça ao vento, desesperado.
— Já vai, meu filho? TÃO cedo?
Algo lhe chamou atenção. Congelou.
Na pequena e quadrada sala de visitas, acima da mesa de jantar, havia um quadro com uma pintura belíssima de Huángshān Shi, também conhecida como The Yellow Mount, no leste da China. A paisagem era peculiar: picos de granito com mais de mil metros de altura, que lembravam árvores flutuando sobre um "mar de nuvens", enchendo os olhos. A pintura, retratando um fim de tarde, tinha tonalidades amarelo-avermelhadas que contrastavam com a paisagem verde-escura das montanhas, trazendo paz e tranquilidade ao ambiente. Sam se perguntou se gostaria de conhecer o lugar. Mas havia uma sensação estranha, como aquela que temos quando já conhecemos muito um lugar e queremos explorar novos horizontes.
"Isso vai servir."
Sacou seu celular do bolso e enquadrou a obra na pequena tela. Registrou a foto para mandar depois com algum efeito bacana pelo Instagram. Guardou o telefone no bolso esquerdo de seu jeans — era a segunda semana sem lavá-lo. Pensou no porquê se lava camisas com mais frequência do que calças.
— Claro, porque você já não está suficientemente atrasado.
Um jovem quase adulto guarda o celular no bolso, beija gentilmente a bochecha da mãe, afaga os cabelos da irmã e se vira para sair. Sai da porta, volta correndo e abraça as duas.
— Vai logo, seu cabeção irresponsável.
— Também te amo, Alt-Táb. — O apelido carinhoso irritava a irmã mais nova mas também a fazia se sentir especial.
— Sai! Vai logo — empurrou o irmão, impedindo uma chuva de beijos, coisa que ela fingia detestar.
Uma mãe e uma filha tomam café e Nescau calmamente enquanto Sam desce dois lances de escada desesperado em direção à Universidade Federal de Santa Catarina.
— Será que ele vai chegar a tempo?
— Ele nunca chega, filha, nunca chega. Mas eu tenho esperanças — e tomou um gole de café, sem açúcar.
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Beyonders: indo além - livro 1, A Tríade
FantasyA vida humana segue as leis desse universo material, um código de manifestação complexo, mas limitado. Porém alguns extrapolam o comum e representam todo o potencial humano, além do tecido ilusório da realidade que nos cerca e dos meros sentidos fís...