Capítulo 2 - Marcelo

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Se eu já não fosse azarado o suficiente, diria que atingi um novo ápice.

Mas até os azarados mais competentes conseguem surpreender de vez em quando.

Gosto de pensar que sou uma espécie exemplar; um novo tipo de indivíduo que foge da sorte ao invés de aproveitá-la até o último sopro ou um espírita inverso que afasta seu amor em até três dias úteis.

Olha só, que engraçado! Essa foi a mesma duração do meu último namoro. Posso começar um portfólio espiritual e utilizá-lo como exemplo já que vou mesmo precisar de um emprego novo depois de ter sido enxotado do meu próprio apartamento.

Dormir atrás do balcão da recepção jamais estaria nos meus planos se o Seu Carlos não tivesse estendido a mão amiga. A ideia inicial era usar minha mochila como travesseiro para adormecer aos pés de um coqueiro qualquer nas areias geladas da praia, mas acho que ele se compadeceu da situação quando ouviu os gritos da minha irmã me perseguindo escadaria abaixo.

Nós moramos no décimo segundo andar.

Minhas pernas — e minhas orelhas — nunca queimaram tanto.

Mesmo assim, essa foi a noite de sono mais tranquila que eu já tive. A mais curta, também. Preocupado com o horário, o porteiro do prédio me acorda com tapinhas leves no ombro direito. São 5 da manhã e ele precisa terminar o expediente.

Meu nome é Marcelo e eu sou um azarado.

E madrugadas como essa me fazem torcer por dias melhores.

— Marcelo, ei, rapaz — sussurra, discreto. — Sinto muito, filho, mas não posso te esconder pra sempre. Tá quase na hora do zelador chegar.

Meus olhos abrem com lentidão. Em contrapartida, minha boca fecha, e eu quase acerto meu próprio queixo com um soco ao limpar a baba seca com o punho. Exausto, me viro de costas com um suspiro. O chão de porcelanato já não está mais tão gelado como quando me deitei sobre ele pela primeira vez, mas minha mochila continua um péssimo travesseiro.

Percebo que estou com uma dor latejante do lado direito do quadril quando tento me levantar apoiando o peso do corpo. A posição encurvada em que passei as últimas quatro horas fora parte do trato que Carlos propôs: se eu quisesse passar o resto da madrugada dentro do prédio, existia um ângulo exato em que a cadeira dele serviria de escudo contra o olhar atento da câmera de entrada.

Se eu ficasse bastante curvado, apenas meus pés ficariam para fora da "área de cobertura". Nesse último caso, a participação especial de uma lata de lixo repleta de pedaços de papel de carta ajudou a evitar que as imagens gravadas se parecessem com a cena de um crime. Mesmo sendo bastante cômico imaginar a cara do síndico ao ver dois pés brancos caídos atrás da bancada nas gravações de segurança.

Escondo um bocejo escandaloso contra o painel de madeira ripada enquanto calço meus sapatos. Carlos continua sentado, mas enche a própria mochila com seus pertences. Um medalhão de São Judas Tadeu escapa de seus dedos e eu o agarro no ar antes que colida com o meu joelho.

— Olha só, que ironia — o homem ri, tirando o pingente de metal da palma da minha mão com a delicadeza de quem maneja a pétala de uma flor.

— Vai dizer que esse é o tal santo das causas perdidas?

Ele não precisa responder. O olhar divertido que ele carrega debaixo das sobrancelhas grisalhas já diz tudo.

— Aqui, ó. Fica pra você. Sinto que ele te escolheu por um motivo.

O medalhão pródigo à casa torna. Fecho o punho e balanço a cabeça, esquentando o pingente entre os dedos.

— Me pergunto qual é esse tal motivo. Qual deles, no caso.

Gótico Gourmet [DEMO]Onde histórias criam vida. Descubra agora