Estou encarando o cidadão misterioso com tanta intensidade que quase me esqueço das regras básicas de etiqueta. Por sorte, ele está tão nervoso que não parece perceber. É um desses tipos tímidos e tagarelas ao mesmo tempo, que começam uma frase e engatam em outra porque consideram o silêncio constrangedor demais. O que é uma pena porque eu amo um momento silencioso. Me ajuda a organizar meus pensamentos.
Tipo aquele em que me pergunto onde, como e quando eu mencionei que estava procurando um auxiliar de cozinha.
— Faço de tudo — insiste. — Culinária italiana, mexicana, grega, tailandesa...
Levanto o dedo indicador para interrompê-lo e viro o rosto ao sentir uma coceira premonitória na ponta do nariz. Acabo amassando o currículo no processo, mas não é como se ele já não estivesse em más condições. Quando me certifico de que o terceiro espirro foi realmente o último, ajeito a postura e balanço a cabeça.
— Não sei onde você viu esse anúncio de emprego, mas não estou procurando ajuda.
Ele me olha com os lábios entreabertos.
— Isso não é um restaurante?
Olho para os lados. Não há mais ninguém na rua a essa hora a não ser nós dois. Se ele sabe da existência do restaurante, então provavelmente não é um humano. Gostaria de poder afirmar com certeza, mas não consigo sentir seu aroma com essa droga de nariz entupido. De qualquer forma, meus vizinhos não são vampiros, e não quero correr o risco de atrair atenção indesejada.
Receosa, dou um passo para trás e faço um gesto curto com a mão.
— Entre.
— Então o emprego é meu?
— Não força — sibilo. — Apenas entre.
Pego de surpresa, o rapaz tropeça nas próprias palavras e coça a barba por fazer. O jeito que suas sobrancelhas expressivas arqueiam até o meio de sua testa transmite uma mistura de curiosidade e insegurança. Provavelmente está tão perdido quanto eu. Ou fora tão enganado quanto.
Enquanto ele decide se acata as ordens de uma estranha e entra em seu estabelecimento secreto, dou uma rápida lida no papel que me foi entregue. Sua experiência profissional acompanha uma série de restaurantes e lanchonetes da época da faculdade até o último contrato, aparentemente encerrado pouco mais de um ano atrás. Se está mesmo procurando emprego desde então, provavelmente chegou no ponto em que a busca se tornou desesperada.
E se todo esse desespero o trouxe até o Panela Rubra, é porque algo ou alguém o colocou nessa situação.
Odeio mencioná-lo novamente, mas isso deve ser coisa do Arthur. Mandar um pobre coitado desempregado bater à minha porta é algo que ele faria para jogar na minha cara que não consigo fazer nada sozinha. Qualquer ajuda serve, ele diria, ostentando aquele sorrisinho condescendente de quem só fala com olhar de pena. Pelo menos assim você percebe que o restaurante é um caso perdido, fecha as portas e pede desculpas por ter me afastado.
— Marcelo — digo, fugindo da tentação de reviver memórias antigas mais uma vez. — 27 anos, formado em gastronomia, especialista em culinária brasileira.
Ele lança olhares furtivos para dentro do restaurante antes de voltá-los para mim. Percebo seu nervosismo e opto por abordá-lo com cuidado:
— Eu sei seu nome, sua idade, seu número de telefone e seu endereço. Se está com tanto medo de cair em um golpe de tráfico de órgãos, saiba que dar a meia volta não vai protegê-lo mais.
Dou um sorriso de canto, tentando parecer uma pessoa simpática o máximo que posso. Ele dá uma risada forçada e me ultrapassa rapidamente, concluindo sua entrada espontânea com um floreio.
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Gótico Gourmet [DEMO]
VampirosAyla é uma vampira. Marcelo, não. Ayla tem um restaurante à beira da falência. Marcelo foi expulso de casa pela própria irmã. Existe algo mais genuíno do que a conexão entre duas pessoas através da desgraça compartilhada? Quando o Panela Rubra, rest...