Capítulo 1 - Ayla

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Se eu não fosse imortal, diria que a rinite seria o meu fim.

Uma pequena pilha de pratos sujos balança em posição precária. Estou controlando-a o melhor que posso, centralizando o peso na palma da única mão que não segura um pedaço de papel toalha contra o meu nariz.

Não sei o que dói mais: o atrito do lenço improvisado ou a luta contra um espirro que colocaria tudo a perder.

Destemida, encaro os riscos de queixo erguido e me arrasto até a escadaria, parando apenas ao ser acometida por uma vertigem passageira. Quinze degraus me separam da cozinha localizada no porão. Meu corpo sequer me permite andar em linha reta.

Acompanhada por um grunhido impaciente, deixo a louça usada sobre um gabinete de madeira velha e me ajoelho como se estivesse prestes a admitir derrota – o que não estaria longe da realidade, para ser sincera. Com as duas mãos livres, afundo o rosto em mais um pedaço de guardanapo retirado com urgência do bolso do avental e forço o ar para fora do nariz.

O barulho que o gesto faz é bem mais significativo do que a tentativa em si.

— Berda.

Sinto que morrer me transformou em uma praga ambulante. Deixar de ser humana não significou nada para as maldições que me atormentavam em vidas passadas, incluindo alergias climáticas. De que adianta ser forte como um touro se touros não são imunes aos problemas da humanidade?

Se bem que nunca vi um touro resfriado. Touros têm alergias? Eu deveria saber a resposta para essa pergunta?

Faço questão de demonstrar minha insatisfação com o universo enquanto faço barulho ao colocar os pratos sujos dentro do móvel estropiado. Não se preocupe, vou lavar cada um deles quando tiver condições de me mexer sem espirrar. Até lá, tenho todo o tempo do mundo.

Meu nome é Ayla e eu sou uma vampira.

E madrugadas como essa me fazem querer cair em cima de uma estaca.

São 4 horas da manhã de uma segunda-feira qualquer. O último e único cliente da noite cambaleou porta afora há pouco mais de 5 minutos, deixando para trás um salão vazio e bagunçado. Ao observar as mesas sujas, sinto uma vontade enorme de mandar várias mensagens para o meu ex.

Ex-ajudante.

Arthur era uma força da natureza quando se tratava de arrumações em tempo recorde. O jeito que ele caminhava pelo salão com um sorriso enorme no rosto e uma gentileza enjoativa quase me convencia de que ele gostava do emprego. Aí eu fechava a conta do dia, me despedia da clientela, fingia estar satisfeita com um lucro inexistente e via aquele sorriso se desmanchar em carrancas impacientes.

— Balela — dizia, tirando o avental da cintura e atirando-o no chão. — Há quantos anos eu tenho te avisado que esse lugar é uma perda de tempo?

Muitos. Acho que uns 20.

O mesmo número de vezes em que pedi para que ele não descontasse sua ira no avental.

Naquela época, Arthur havia começado a se declarar cético quanto ao propósito do Panela Rubra, restaurante que criamos juntos para dar força à nossa sociedade. O intuito era oferecer um ponto de encontro exclusivo para gente como a gente, onde histórias seriam compartilhadas e experiências seriam devidamente validadas por quem realmente as entendesse. Não há muito o que terapeutas humanos possam fazer pelos dilemas do vampiro moderno. Não sem descobrir a verdade por trás do nosso segredo.

Mesmo assim, de uns tempos para cá, os poucos vampiros estacionados no litoral de São Paulo foram perdendo o interesse em fazer a social fora de casa, optando pelo consumo à domicílio e por salas de convívio digital. Muitos já trabalhavam remotamente, o que facilitou a migração de todo o resto para o âmbito virtual. Aos poucos, sair às ruas tornou-se obsoleto. Fútil. Perda de tempo.

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