Rei.

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Que seja feita, a vontade do rei.

  O doce e familiar aroma da resina permeava minhas narinas, proveniente das tochas de qualidade insuperável neste reino. Seu perfume delicado acentuava o contraste na sala, onde os brutais templários e os honrados homens da guarda real engalfinhavam-se em discussão. Os templários ostentavam suas vestes habituais, a cruz resplandecendo como o mais notório emblema em seus trajes imaculados, enquanto o ferro, símbolo de sua bravura, destacava-se nas vestimentas dos soldados leais ao rei.

  Ao meu lado, a figura serena, envolta em vestes alvas, repousava em seu trono de metal, imutável. Seu rosto permanecia oculto sob a máscara de prata, fiel reflexo de suas feições. Um pano branco, estendido sobre sua cabeça, em estreita ligação com sua fisionomia enigmática. Suas mãos, envoltas em luvas brancas, repousavam com serenidade sobre o trono. Um homem marcado pela maldição.

— Se é permitido dizer, não há paz enquanto nosso povo, os verdadeiros servos do senhor, vivemos em constante ameaça e tememos por nossas vidas. — A voz firme, veio do templário de longos cabelos que conhecíamos muito bem.

  Guy de Lusignan, consorte da nobre princesa Sybila, figura execrada por entre as paredes do castelo. Um embate fervoroso entre os templários e os eruditos alça-se, sua inevitabilidade ecoando como o rugido de um trovão nos céus. As vozes dos contendores, tão previsíveis quanto o vento que assobia pelos corredores, clamam por atenção. Contudo, o silêncio imaculado à minha destra é o que verdadeiramente me surpreende. A máscara de prata, imóvel como uma estátua de pedra, oculta os segredos de quem a usa, enquanto os olhos azuis, frios e distantes, parecem contemplar um mundo distante e desconhecido.

— Salahuddin mantém a paz, nunca atravessa nossas terras e não mata nossos homens. Não devemos iniciar uma guerra desnecessária, homens da terra santa. — Como era esperado, é o barão de Ibelin quem assume a frente da discussão, com a sabedoria que o caracterizava.

  Sinto-me agitada, enquanto o rei ao meu lado permanece imperturbável, observando silenciosamente. O clamor das vozes cresce gradualmente, transformando a discussão em um debate acirrado, com toda a impotência de Guy palpitando no ar. A ânsia dele, como um predador prestes a dilacerar a presa com os próprios dentes, é palpável no ambiente. Num momento de repente, um silêncio absoluto se abate sobre a assembleia. Ao inclinar levemente a cabeça, deparo-me com o rei erguendo a mão, cujo gesto cala todo o salão instantaneamente.

— O tratado de paz com Salahuddin não será quebrado, todos possuem direitos iguais de viver nesta cidade, não haverá mudança alguma nisto. — A voz dele era suave e profunda, uma presença poderosa. O breve sinal foi suficiente para inflamar meu coração, e não das melhores formas. Eu já percebia um rastro de resistência surgindo dentro de mim. — Não haverá guerra sem sentido, não mandarei homens para morrer numa causa. — Ele para, e por trás de sua máscara de prata, eu consegui ver seus olhos fixos em Guy, que fica tenso. — Inútil. — Os olhos de Guy se abocanham, enquanto o rei continua a mantê-lo fixo com os olhos, enviando-lhe um sinal claro.

  Os homens parecem atônitos, e Guy exibe sinais de constrangimento. Um grito ecoa, anunciando a chegada de um templário subalterno de Reynald de Châtillon, ocultando algo sob suas vestes. Não há tempo para hesitação; eu me interponho entre o rei e o intruso, desembainhando minha espada com destreza e apontando-a em sua direção. O homem, surpreso, imobiliza-se, enquanto olhares perplexos, encobertos por uma falsa inocência, se estampam nos rostos dos templários. Uma chama de determinação inflama dentro de mim, enquanto seguro firmemente o cabo da minha espada, mantendo meu semblante imperturbável.

— Em muitos anos eu não presenciava uma tentativa de traição tão patética, milord. — Minha voz estava baixa, enquanto minha espada estava a apenas alguns passos da garganta do rato traidor.

  O silêncio que envolve a sala é tangível, o ar carregado de tensão e agressividade. Posso sentir a ira emanando de cada olhar direcionado a mim, desapontados com minha tentativa fracassada. Uma explosão de sentimentos irrompe dentro de mim, uma batalha interna entre o rei, a espada e a iminência da morte. Minhas emoções se entrelaçam em um turbilhão de fúria e desejo de vingança, uma tempestade que se agita em meu peito. Como ele ousa tentar arrebatar uma vida que já me pertence? Jamais permitirei que ele saboreie tal coisa, jamais.

— Alyza. — A voz que me trazia arrepios me puxa de meus pensamentos, eu não desvio meus olhos do traidor, no entanto.

— Sim, meu rei. — Minha voz estava baixa, embora bem clara em minhas intenções.

  O silêncio perdura por alguns instantes que parecem uma eternidade, como anos de espera que consomem meu peito de ansiedade. Meu olhar permanece firme no homem, imóvel mesmo quando ele descarta o punhal e se ajoelha diante de mim. Minha espada mantém sua mira implacável, acompanhando cada gesto dele com ferocidade, enquanto a fúria em meu coração cresce, assim como a antecipação pelo destino de sua alma.

— Traga-me, por favor. — Foram as únicas palavras ditas pelo rei. Em segredo, ele não gostava de ver a morte, mas com certeza apreciava a maneira como sua serva leal se jogava entre ele e a certa morte, cegamente e estupidamente obediente. Eu sabia.

  Num instante de pausa, retive o fôlego, aprisionando-o nas profundezas do meu ser. A clemência repousava, trancada e oculta, inalcançável no santuário do meu coração. Os olhos do templário me fitavam com ardor, demasiado altivo para suplicar. Somente ao afundar meu pé no solo, ecoou sua voz brevemente silenciada.

  Curvando-me, ergui o mais precioso troféu, a cabeça de um nobre cristão. Apertando seus cabelos, desprezando qualquer vestígio de honra, meus dedos se enredaram nos fios rubros, pressionando com firmeza até que a pele de sua fronte se estirasse, contorcendo sua face em agonia indescritível. A lâmina afiada se moveu com destreza renovada, sem sombra de erros e com golpe rápida e certeiro, separou a cabeça do malfeitor. O corpo tombou, tingindo o tapete de veludo com sangue quente, testemunho do fim abrupto
que a vida encontrara naquele invólucro de carne corrompida. Contemplei por momentos, seus olhos arregalados como os de um maldito peixe, os lábios entreabertos , e só pude desejar que ele experimentasse cada segundo desse desfecho, como eu daria anos da minha vida para assegurar que testemunhasse sua própria aniquilação, como um mero esqueleto desprovido de valor ou esperança. O orgulho, agora perdeu seu fulgor.

— Sua lealdade e seus serviços não passarão despercebidos, Alyza Masoud. — Sua voz era gentil, embora distante, irritante, repugnante, abominável.

  Meus olhos se apertam, em sua direção. Se somente ele soubesse que o único motivo de sua salvação foi para que eu pudesse saborear sua morte com as minhas próprias mãos. Eu quero esse débito em minha alma quando chegar aos portões do inferno, e eu irei pagá-lo, com prazer. Aproximo-me mais do trono, ajoelhando-me diante dele e depositando a cabeça aos pés do rei. Ouço murmúrios sussurrantes, demasiado covardes para ecoar em alto tom. Ergo-me, encarando os olhos frios do monarca, discernindo uma centelha de orgulho oculto em suas profundezas, a satisfação de ter um leal cão a seu serviço, presumo. Liberto o fôlego aprisionado e, em seguida, viro as costas para o trono e todo o espetáculo ali encenado.

— Que seja feita, a vontade do rei. — É a única coisa que digo, antes de deixar a sala de reuniões.

  Cruzo diante do barão de Ibelin, seus olhos melancólicos encontram os meus enquanto passo por ele em silêncio. Não desperdiço o instante para fitar Reynald de Châtillon por um breve momento, ciente de que havia proclamado sua inimizade contra mim naquele dia.

  Em silêncio, eu caminho pelo castelo, as longas escadas me levam até as câmaras reais e ao lado, a minha. Eu entro, ignorando os soldados que esperavam do lado de fora. Caminhando até meu espelho, logo notei a marca de sangue gravada em minha bochecha, ali para me lembrar da vida que tirei para proteger o homem que mais odeio, um homem cuja a morte já tocou e o tornou dela. A cada alvorada, imponho a mim mesma a miséria por causa deste ser, sacrifico minha alegria e pureza, reduzo-me a fragmentos para encaixar-me nesta armadura, mas por qual razão? Diariamente, mergulho na condenação infernal na vã tentativa de prolongar sua existência, tola e frágil, meu espelho reflete-me a verdade a nascer e por de sol. Agarro-me a qualquer fio de esperança, ciente de que apenas me trará mais dor e sofrimento. Sou uma falha, condenando-me incessantemente por ter seguido este homem, a quem deveria ter destroçado há muito tempo.

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