Sultão.
Pela manhã, com um olhar mortiço, contemplo a gigantesca porta do castelo, experimentando um frio persistente em meu estômago. Neste dia, visto uma armadura especial, de cor azul e com uma grande cruz, nada ténue à vista, como se esperava nesta ocasião. O brilho fresco da prata contra a minha pele gelada. Os olhares questionadores, esta sensação singular. A minha longa noite de desassossego, a enrolar-me nos lençóis, não conseguia chegar a um veredito, se deveria usá- la ou não. E eis que ela surge, abraçando-me o rosto de uma forma arrogante mas ousada. A porta abre-se, e a primeira coisa que avistamos é o cavalo de pelagem alva, de cela vermelho-escarlate. Uma velha amiga insubstituível, que não via há demasiado tempo. Tibérias e Godfrey estreitaram os olhos para mim, e Guy, ao ver-me, virou as costas e saiu, extremamente aborrecido. Lá fora, há gente comum, curiosa e insistente nos seus olhares, bem como um bispo, velho amigo dos Templários, disposto a fazer uma cena.
— A oferta de paz? — O toque da prata ofuscou-me a voz, uma nota penetrante e curiosamente familiar.
Vi Tiberíades a fazer sinal a um soldado, que levou a bela caixa até ao meu cavalo, cheia de intriga para os meus olhos curiosos. A cabeça de Gerard estava quase a fundir-se com o ouro puro e reluzente. Os seus lábios abertos, mas sem carne, não passavam de meros buracos. Neste rosto de horror, era evidente que o ouro borbulhante e líquido fora derramado sobre o seu corpo ainda a respirar.
— Porque escondes a tua face? —Ouço a voz de Godfrey a alguns centímetros de distância, a minha distração impede-me de o ver aproximar-se.
— Trata-se de um pedido direto do rei. — Respondi-lhe antes de fechar a caixa e voltar à sua presença. Agora, a fisionomia dele era diferente, a suspeita assombrava-o, embora não devido às minhas palavras.
— Entendo. — Vejo-o rir genuinamente, um contraste marcante com a última ocasião em em que lhe vi os dentes. Ergo as sobrancelhas em sua direção quando ele levanta as mãos em sinal de rendição com um brilho nos olhos diferente de tudo que já vi até agora.
— O que? — Perguntei-lhe, e ele limitou-se a abanar a cabeça em sinal de negação. Qual é a piada?
— Nada, acredite. — Assisto ao toque da sua mão sobre o meu cabelo, não coberto por qualquer tecido. — Venha aqui. — Pouco antes de reagir, os seus braços envolveram o meu corpo, o seu abraço suave deixou-me incapaz de recuar. — Volte para casa. — Vi-o afastar-se e, com um olhar de perplexidade, limitei-me a acenar com a cabeça em sinal de assentimento.
Com um suspiro, lanço-me sobre o meu cavalo para depois fechar os olhos por um instante. Todos esses sentimentos datados, desencadeados por velhas recordações ainda tão recentes, atormentam-me durante muito tempo, talvez tempo demais. Com um movimento de coxas, o animal começou uma caminhada ao longo da rua, suscitando olhares de todos os lados. Há crianças que me acenam e são repreendidas por seus pais, facto que me faz rir sempre. Um breve olhar para trás e vejo a parede a formar-se atrás de mim. Soldados de alta posição, montados em cavalos ligeiros, vestidos com armaduras sumptuosas, um número adequado, tomando as vias de Jerusalém de forma dominante. Mais adiante, quando já era seguro, ergueram a cruz dourada e amarela sobre o exército. Um monumento poderoso e indescritível, levantado sempre que nos dispomos a transformar homens em cinzas. A forma parece-me antiquada, mas a finalidade eficaz.
Começara uma longa jornada sob o deserto e o sol impiedoso. Após apenas dez horas, já haviam homens a cair dos seus cavalos e a serem arrastados pelos seus companheiros, enquanto a noite era ainda mais cruel do que a manhã. Embora os nossos pulmões se convertessem em gelo, e as nossas gargantas sofressem de dores ao respirar, não houve tempo para parar. O sol voltou a incidir sobre as nossas peles, um breve espaço de segundos para que os cavalos descansassem e, de novo, a marcha sem parar. O sol está a baixar e Kerak ganha visão, um alívio logo encurtado por bandeiras vermelhas que surgem nos céus.
VOCÊ ESTÁ LENDO
A fúria do Caído.
RomanceNo ano de 1180, a jovem Alyza encontrava-se mergulhada numa disputa interna entre o ódio e a lealdade. A perda em vida do seu amado pai, tido como traidor do Rei, corroeu-a como uma queimadura, cravada em seu coração. Enquanto a sede de vingança a e...