Elle - Prólogo

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O caminho para o aeroporto foi extremamente silencioso. O Uber sequer estava com o rádio ligado e não diz nada além um "bom dia" desanimado quando eu entro no carro. Passo o caminho todo olhando pela janela, mas sem ver de fato o que estava acontecendo do lado de fora. Meus pensamentos estavam no passado.

Lembro de quando era pequena. Acho que tinha 5 ou 6 anos e dançava e ria com minha mãe em volta da mesa de centro da sala da nossa pequena casa. Lembro do cheiro do bolo de chocolate no forno. Lembro que, antes de ligarmos o rádio, costumávamos a brincar de modelo. Ela me deixava passar maquiagem em seu lindo rosto angular, mesmo que eu não soubesse o que estava fazendo e pentear seus cabelos longos e macios. Me deixava usar suas roupas, maquiagens e o que virou minha obsessão de vida: sua enorme coleção de sapatos. Lembro que conforme as estações foram passando e o inverno chegando, minha mãe não tinha mais ânimo para brincar de modelo comigo. Não dançava mais em volta da mesa de centro, não me pegava nos braços pra fazer cócegas e sequer saia da cama. Na época, eu não sabia o que estava acontecendo. Meu pai tomou as rédeas da casa e tentava equilibrar o trabalho com os cuidados da filha e da esposa doente.

Meus pais eram ouro. Eu os amava como pais e admirava seu relacionamento. Sempre achei que eram mais bonitos do que os casais de contos de fadas. Lembro de minha casa sempre com música, do aroma delicioso da comida de minha mãe, do som de sua risada doce quando meu pai a pegava nos braços, a tirava da cozinha e dançava com ela ao som de Frank Sinatra. Lembro do dia em que mamãe apareceu com uma cor de cabelo diferente. Ela estava linda, mas o rosto pálido não podia ser disfarçado nem com maquiagem. Nessa época, papai sempre estava com um semblante exausto, mas ainda colocava música no rádio para animar nossos dias. Mamãe continuava na cama. Até o dia em que teve que partir.

Foi a primeira vez que estive de frente com a morte.

Mamãe falaceu de leucemia no final daquele ano. A partir daí e por muitos anos, foram somente papai e eu. Seu olhar era sempre triste, mas ele se esforçava para continuar o mesmo. Tentava ser feliz e me fazer feliz todos os dias. E conseguia. Lembro das nossas guerras de travesseiro e de como tentávamos cuidar do jardim que minha mãe havia deixado. Lembro que nos sábados a noite assistíamos televisão e comíamos pizza, abraçados no sofá da sala.

Papai tentou seguir a vida e, apesar da falta que mamãe fazia - e ainda faz - em nossas vidas, conforme fui crescendo, fui incentivando meu pai a fazer isso. Meus pais amavam dançar, amavam sair para dançar com casais de amigos, mas meu pai se recusava a sair sem ela. Quando entrei na adolescência, fui incentivando meu pai a retomar sua vida social ainda mais. A morte da mamãe doía - e ainda dói - todos os dias, mas ver meu pai com os olhos tristes e cansados diariamente também acabava comigo. Com muita insistência, consegui convencê-lo a sair com os antigos amigos para alguns bailes pequenos da cidade em que morávamos. Em um desses eventos, papai conheceu Linda.

No começo, eles ficavam escondidos de mim, acredito que para poupar meus sentimentos, mas eu via um brilho diferente e uma felicidade quase jovial no papai. Aos poucos ele foi introduzindo Linda nas nossas vidas. Eu tinha 13 anos quando eles se casaram, em um dia quente de primavera.

Minha madrasta sempre foi uma admirável mulher de negócios. O tipo de mulher que exala poder só de entrar em um ambiente. Ela sempre me tratou muito bem, nunca passou dos limites e nunca forçou uma relação de mãe e filha comigo, afinal, ela já tinha suas próprias filhas: Anne e Lily. As duas também sempre foram legais comigo e, conforme o tempo foi passando, criamos uma verdadeira relação de irmãs. Ambas são mais novas do que eu, Anne 1 ano e Lily 2 anos. Todos acham que elas são gêmeas, são muito parecidas e muito bonitas. Bonitas do tipo supermodelos, uma beleza diferente da minha. Eu, ao contrário delas, sou extremamente comum.

Mas Linda não morava na nossa cidade. Estava passando as férias na casa da família quando conheceu meu pai e eles mantiveram um relacionamento a distância com visitas esporádicas, até que eu concluísse o ensino médio. Quando fiz 17 anos, mudamos para a Califórnia, para a casa da Linda. Foi somente nesse momento que eu descobri que minha madrasta-mulher-de-negócios era uma importante diretora de produção de um canal na TV a cabo. E que ela e as filhas eram absurdamente ricas.

Aos 18, consegui uma bolsa de estudos integral para estudar moda em uma renomada faculdade em Nova York. Não queria deixar meu pai sozinho, apesar de ter a companhia de Linda, Anne e Lily, mas ele me convenceu a aceitar a proposta e me colocou primeiro avião em direção ao meu destino. Nesses 4 anos de faculdade, fui visitá-los algumas vezes, incluindo quando meu pai contou que ele e Linda estavam grávidos, no nascimento dos trigêmeos Gus, Bella e Jack, nos dias de Natal e em cada aniversário - tanto no de papai, quanto de Linda e dos meus meio-irmãos e irmãs. Mas essa minha volta pra casa é diferente.

É a segunda vez que me deparo com a morte. Papai se foi em um acidente de carro, há mais ou menos 3 meses. Lembro de receber a ligação de Linda e sentir que havia algo errado no instante em que disse "alô". Fui para casa para o velório e enterro, mas tive que voltar para Nova York em poucos dias para as provas finais. Agora, com meu diploma em mãos, senti que era o momento de retornar definitivamente ao lar, apesar de saber que as melhores oportunidades do mundo da moda estão em Nova York.

- Senhorita? Chegamos. - Ouço o motorista soando impaciente, como se não fosse a primeira vez que me chama.

- Ah, sim. Certo... - Digo, piscando repetidas vezes, saindo do transe. Tiro o cinto, meio atrapalhada, abro a porta e saio do carro.

Assim que percebo que o motorista não faz menção alguma de descer do carro para me ajudar a descarregar a quantidade monstruosa de malas que eu havia trazido, me atrapalho ainda mais na hora de tirar tudo do porta-malas, mas logo um funcionário prestativo do aeroporto me ajuda com as malas. O motorista do Uber acelera assim que ouve o porta-malas se fechando e eu sequer tenho tempo de agradecer pela corrida.

Agradeço o funcionário do aeroporto pela ajuda e o jovem simpático retribui com um sorriso, mas rapidamente desaparece na multidão de pessoas que estavam indo pegar seus voos ou saindo de lá. Arrasto minhas malas com dificuldade até o check-in e em seguida ao portão de embarque. Seria uma viagem mais longa e cansativa do que eu gostaria que fosse.

Será Que É Meu Número? • Chris SturnioloOnde histórias criam vida. Descubra agora