"...No dia em que te encontrei pela primeira vez, houve apenas amor transbordando em meu peito. Eu não fiz nada além de olhar para você, mal sabendo o quão cego eu era até aquele exato instante..."
***
Era uma pintura bonita.
Feita inteiramente de pinceladas precisas de tinta óleo e adornada com uma moldura dourada ostentosa. Chamava atenção por si só, mas o trabalho em si ficava em completo segundo plano diante do modelo.
Na imagem, o jovem garoto esparramado sobre uma cama desarrumada encarava seu admirador com um meio sorriso nos lábios. Os cabelos vermelhos carmesim encaracolados e ligeiramente desordenados, olhos azuis satisfeitos e brilhantes e a fumaça do cigarro preso entre os dedos finos criando uma aura ao seu redor.
Ele estava nu.
Andrew Minyard teve um instante de dificuldade para se acostumar ao choque dessa revelação.
O que pareciam quilômetros de pele dourada e tão cheia de cicatrizes que se assemelhava a um campo de batalha, descia até o amontoado de lençóis brancos enrolados entre as pernas bem torneadas, mal cobrindo a virilha. Uma janela na lateral banhava o ambiente com raios de sol matinais e todo o resto era apenas um eco desfocado de tons cinzas e azuis do que deveria ter sido um quarto nos anos 70.
A primeira vez em que Andrew colocou seus olhos naquela pintura ele tinha dezenove anos. Era um jovem estudante recém ingressado na faculdade de Direito e sem qualquer perspectiva de vida que não fossem os abarrotados dormitórios estudantis e refeições insalubres.
Ele nem deveria estar ali para falar a verdade.
Só tinha entrado naquele antiquário porque foi pego desprevenido por uma chuva torrencial e inesperada no meio de outubro e não havia qualquer outro lugar para se proteger senão aquela loja de quinquilharias empoeiradas que ficava a duas ruas da sua cafeteria favorita.
Fosse qual fosse o caminho que o destino escolheu para levá-lo até ali, fato era que, mesmo sem pensar ser possível, Andrew se apaixonou à primeira vista.
...por uma maldita pintura.
Não que tivesse percebido isso imediatamente naquele momento. Apenas foi acometido pelo desejo de possuir aquele quadro, trazê-lo para casa consigo para que pudesse pendura-lo diante de sua cama e observá-lo para sempre.
Foi interrompido de seus devaneios quando alguém limpou a garganta à sua esquerda.
— A pintura se chama "Étoile du matin", significa "Estrela da manhã". Foi pintado por um artista chamado Jean-Yves Moreau em maio de 1978.
A senhora parada ao seu lado parecia bastante velha, apoiada em uma bengala de madeira e com um pequeno sorriso nos lábios finos.
— Como você sabe disso?
Foi uma pergunta estúpida. A mulher era, provavelmente, a dona do antiquário e, portanto, deveria saber dessas coisas.
— O homem na pintura, eu o conheci. – E havia uma dor clara no rosto enrugado, um sentimento aberto e tão cru que fez com que Andrew desviasse o olhar.
Ele se sentiu um intruso, ainda que fosse a velha quem viera até ele.
— Ele era seu? – As palavras fugiram dele antes Andrew pudesse pensar muito sobre elas, com certeza não estava esperando as risadas que as seguiram.
— Neil Abram Josten não era de ninguém além dele mesmo, garoto. – Ela apoiou-se ainda mais em sua bengala, um sorriso terno preso em seus lábios. – Ele foi meu melhor amigo, minha alma gêmea sim, mas isso não significava que fosse meu. Entenda, alguém tão lindo e brilhante sempre irá pertencer às estrelas, Jean fez um ótimo trabalho ao nomear sua pintura.
Foi . A palavra ecoou na cabeça de Andrew como um grito.
— O que houve?
— Foram alguns anos terríveis, nós perdemos tanto... Ele se foi em 13 de dezembro de 1988. Uma gripe que evoluiu para pneumonia, foi eles disseram, mas nós sabíamos a verdade. Nós ficamos com ele até o final, reunidos em volta daquela maldita cama de hospital... e doeu tanto, doeu vê-lo no final-...
E apesar do que muitas pessoas pareciam pensar, Andrew não era insensível ou obtuso.
Ele sabia.
1988 e uma gripe que evoluiu para pneumonia.
AIDS.
Andrew continuou voltando ao antiquário todos os dias depois disso.
Ele se sentava por horas no fundo da loja diante daquela pintura e contava para ele, Abram, tudo sobre sua vida, seus sonhos, seus planos.
Anos depois, quando Allison Reynolds, a velha dona do antiquário, faleceu de uma doença cardíaca que já vinha assolando-a há anos, a pintura foi entregue no apartamento de Andrew junto a um pacote de fotos, cadernos rabiscados e fitas de vídeo.
"Eu nunca pensei que alguém poderia amar meu Neil tanto quanto eu o amei, sinto muito garoto.
Allison Reynolds."
A imagem piscou duas vezes antes de acender. O rapaz diante da câmera balançou os quadris e agitou os braços no ar ao som da música animada. O cigarro em seus dedos criando pequenas ondas de fumaça branca no ar ao redor.
— Hey, Neil! Mande um oi pro futuro!
Ele olhou diretamente para câmera e sorriu zombeteiro, antes de mostrar o dedo do meio. As roupas que usava eram algo perigosamente preso entre feminino e masculino e os dedos longos estavam cheios de anéis de ouro e prata. Cachos carmesim dançavam no ar, criando um halo ao redor do rosto bonito.
— Olá futuro, é Julho de 1983 e é aniversário da Ally, então todos nós estamos fingindo nos divertir. – Ele zombou e seus braços se envolveram ao redor dos ombros da jovem próxima a ele, só então Andrew percebeu que a garota bonita de cabelos longos e loiros e roupas brilhantes de paetê era Allison Reynolds, muito mais jovem do que ele sequer poderia tê-la imaginado. – Eu espero que no futuro as pessoas não precisem fingir que gostam da Ally. – Ele sacudiu os dedos e enviou um beijo para a câmera.
— Haha, cuzão do caralho. - Allison deu um tapa no peito dele e eles sorriram um pro outro. Carinho brilhando em seus olhos.
Allison apertou as bochechas de Neil e as vozes atrás da câmera riram. Ele piscou para a câmera antes de tragar o cigarro outra vez, soltar a fumaça e voltar a dançar agora com os braços de Allison enrolados em sua cintura.
Neil Abram Josten viveu tão brilhante quanto uma labareda e queimou tão rápido quanto o fogo.
***
"...Almas gêmeas nem sempre estão destinadas a se encontrar finalmente em algum lugar. Às vezes, cada uma delas está presa no seu próprio tempo..."
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Étoile du matin
Romance"...Almas gêmeas nem sempre estão destinadas a se encontrar finalmente em algum lugar. Às vezes, cada uma delas está presa no seu próprio tempo..."