Capítulo 4 // Gamboa dos Portos

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Ele olhou para a menina e não teve reação. Caio o encarou, como se esperasse por alguma atitude, mas Ugo permaneceu alguns segundos parado, até a garota falar outra vez:

— Você deveria estar no trabalho cobrindo a minha folga.

— No... Trabalho?

A estranha olhou para ele sem entender e riu em seguida, com deboche. A goma de mascar aparecia vez ou outra enquanto ela falava.

— Que cara é essa? Bebeu demais ontem e esqueceu da vida?

Ugo aproveitou a oportunidade.

— Acho que sim, apaguei ontem. E acho que bebi muito, porque eu não sei nem para onde tenho que ir – mentiu, tentando coletar informações sem se expor. Forçou um risinho tentando tornar o comentário descontraído.

A jovem riu, estalando uma bola amarelada berrante que lançou no ar um cheiro emborrachado de banana.

— Acho bom você ir logo ou sua cabeça vai rolar. Até parece que você não sabe o quanto o Malaquias é tirano.

— Certo, o... Malaquias. Eu irei – respondeu, automaticamente.

— Vai mesmo, senão o coitado do Leonardo vai ficar sobrecarregado, e você sabe o quanto ele tem medo do velhote.

— O velhote, você diz... é esse Malaquias, né?

— E quem mais, Ugo? Ai, o que há com você? O que ele tomou, hein? – ela virou para Caio, que fez uma expressão de incerteza, não respondendo ao erguer os ombros.

— Pode deixar que eu vou aparecer lá.

Caio assistia à cena intrigado. Pairava uma anormalidade, embora a menina à frente deles fosse superficial demais para notar. Estava mais preocupada em manter as pontas alouradas do cabelo e uma espiral, no fim de um rabo-de-cavalo cuidadosamente arrumado.

— Te vejo por aí – ela disse, virando sem dar tempo de resposta aos dois.

Enquanto ela se afastava, Ugo ficou imóvel. Estava deixando escapar a oportunidade de saber algo acerca de si mesmo, sua chance real de obter informações. Ela o conhecia. O que mais poderia saber sobre ele?

Mas por algum motivo ele não ensaiou nem mesmo um passo. Existia uma força maior, uma sensação tenra que o fez preferir ficar ao lado de Caio. Gastou um tempo em transe, vendo a garota desaparecer em uma das esquinas movimentadas, até ser trazido de volta pela voz de Caio.

— Está tudo bem? Você pareceu meio desconfortável com ela...

Droga.

— Está tudo bem sim – respondeu, incerto de que convenceria o menino.

— Se você tem que trabalhar a gente anda um outro dia, sem problema.

— Depois eu vejo isso. Se você pode tirar um intervalo do seu trabalho, ainda mais no meio desse turbilhão, eu também posso – disse Ugo, desejando saber de fato qual era o seu próprio emprego.

Caio sorriu de leve e os dois retomaram o passo sem qualquer pressa. Um sol generoso banhava as fachadas seculares, boa parte delas deterioradas pelo tempo. Era quase uma regra em Gamboa dos Portos: se as casas e prédios não exibiam rachaduras e tintas descascadas, certamente estariam manchados com sujeira ou pichações. A arquitetura da ilha era um museu a céu aberto, esfregando uma história de ares decadentes para quem quisesse – e não quisesse – ver.

— Sabe, Caio, eu fui até a Pistache, antes de tudo, para pedir desculpa pela forma como eu te tratei. Ainda que você tenha invadido a minha casa.

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