Capítulo Único

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A chama do candelabro tremeluzia na penumbra do escritório de Bilbo. A noite estava tranquila em Bolsão e o gentil hobbit se achava sentado confortavelmente junto à escrivaninha, com a pena na mão, cantarolando e matutando um verso inteligente para sua poesia. Era mês de maio e o ar recendia ao agradável aroma de flores vicejantes e mel. Também é primavera em Erebor. Como estarão os anões por lá?, perguntou-se em meio aos devaneios da própria métrica.

O som de uma porta se abrindo afugentou os pensamentos de Bilbo. Ele se virou e viu o jovem Frodo esgueirando pelo batente. O rosto fanfarrão estava pálido e as sobrancelhas franzidas, como se ele tivesse vergonha de incomodar Bilbo tão tarde. Frodo trazia os olhos fixos nas tábuas do chão.

— Você está bem, meu rapaz? — Bilbo levantou-se, abandonando a pena cuidadosamente no tinteiro. Ele se aproximou do jovem hobbit, que o fitou de volta, seus grandes olhos azuis e cristalinos brilhando com lágrimas não derramadas. — Frodo, qual é o problema? Venha, me diga o que há de errado — abordou gentilmente. A voz que usou trazendo de volta memórias da finada mãe. A maneira como ela se preocupava com seu único filho, o tom maternal familiar, nunca falhava em acalmar Bilbo. O hobbit só podia esperar que surtisse o mesmo efeito com Frodo.

— E-eu... eu não consigo dormir — o pequenino resmungou, enxugando os olhos com as costas das mãos antes que as lágrimas tivessem a chance de cair. — Tive um pesadelo — explicou em voz baixa.

Bilbo sorriu tristemente, dando um tapinha suave na cabeça cacheada de seu jovem parente.

— Parece que compartilhamos mais do que apenas um aniversário — observou Bilbo, recebendo um olhar interrogativo e confuso como resposta.

— Você quer dizer... Você também os têm? Os pesadelos? — ele perguntou, hesitante, e Bilbo assentiu de maneira estoica.

— Todos nós temos. Alguns mais do que outros. — Bilbo estendeu a mão para o hobbit menor. — Agora vamos, de volta para a cama, rapazinho. É cedo que começa o dia.

Atravessaram os corredores bem iluminados da toca e entraram no quarto de Frodo. O recinto fora mobiliado pessoalmente pelo próprio Bilbo Bolseiro, desde uma arca de roupas até sua mesinha de estudos com gavetas embutidas para guardar tinteiros e papiros. Os brinquedos, trazidos de Dale, fariam qualquer criança hobbit ficar verde de inveja. Haviam sido fabricados pelos anões e neles continham magia pura.

O hobbit menor arrastou-se para a cama tão rapidamente quanto um rato do campo. Bilbo riu enquanto diminuía a intensidade da lamparina a óleo na mesa de cabeceira. Ele garantiu que o menino estivesse aconchegado e deu um último afago em seus cachos.

— Aqui vamos nós. Confortável como uma pequena cigarra — disse Bilbo.

Frodo abriu um pequeno sorriso de dentes falhos, virando a cabeça para encarar a janela. Bilbo percebeu que algo estava incomodando o menino. Ele geralmente era um tagarela curioso, cheio de perguntas sobre todo tipo de assunto. O silêncio se prolongou e Bilbo não queria deixar o menino sozinho com seus pensamentos taciturnos ou o que quer que o estivesse incomodando. Ele mordeu os próprios lábios antes de finalmente falar com uma voz baixa, como se estivesse contando a Frodo um segredo muito importante:

— Sabe, Frodo — iniciou o mais velho, deixando as palavras pairarem no ar. Instantaneamente, o hobbit menor voltou-se para ele com uma centelha familiar nos olhos. — Eu tive pesadelos terríveis no passado. Acontecia quase todas as noites. A situação piorou tanto que adquiri o hábito de adormecer na minha mesa muito tarde. Depois da minha aventura nas montanhas, sonhei com aranhas do tamanho de nossas portas redondas e com o brilho dos olhos do dragão me espiando no escuro. Às vezes... — Bilbo engoliu em seco enquanto olhava para a chama oscilante da lamparina a óleo. Brilhante e encantador como o grande tesouro de Erebor. Lembrou-se das mãos frias do rei anão morto envolvendo seus próprios dedos ensanguentados. Lembrou-se de gritar o nome de Thorin em vão. E de se permitir chorar até o amanhecer chegar. — Sonho com velhos amigos perdidos — ele murmurou. — É uma verdade difícil de engolir que as aventuras nem sempre são tão alegres.

Frodo o fitou com sua frágil compleição de criança impressionável, e o mais velho sentiu o coração se partir ao pensar que Thorin teria adorado aquele pequenino como se fosse da própria família.

— Primo, os pesadelos vão embora?

— Eles nunca me abandonaram de verdade, mas também não me atormentam mais.

— O que você fez para detê-los? Você pediu feitiços ao Mago? — perguntou Frodo entusiasmado.

— Meu Deus, não, não... Aquele velho mago está ocupado como uma abelha durante a primavera. Ele aparece quando quer. Não, meu rapaz. Em vez disso, gosto de cantar uma música antes de dormir.

— Uma canção de bardo?

— Para ser mais preciso, uma canção de ninar, cantada pelos elfos em Valfenda. É uma musiquinha doce que me pego cantarolando para acalmar meus nervos à noite. Faz com que meus pesadelos se transformem em sonhos mais justos. Lembro-me de estar em uma cama branca e macia e olhar pela janela para encontrar os elfos cantando alegremente durante a noite. Disseram que eu roncava tão alto que poderia ter acordado um dragão!

Frodo riu disso e Bilbo riu junto dele. Se fechasse os olhos e escutasse com atenção, ele quase conseguia ouvir as vozes diáfanas de seus amigos elfos cantando naquela última casa aconchegante ao leste.

— Você ainda se lembra dessa música?

— De todo o meu coração. Nunca irei esquecê-la.

— Você pode cantar para mim? Eu realmente quero ouvir as músicas dos elfos. Serei capaz de fazer magia se ouvi-las?

— Que ideia! Você está passando muito tempo com Sam, meu garoto — Bilbo resfolegou.

Logo o hobbit mais velho pigarreou e se pôs a entoar a primeira estrofe da música élfica. Ele suavizou a voz, solfejando de forma harmoniosa e límpida em meio ao silêncio do quarto.

"Em júbilo cantemos em uníssono!

Nas copas sopra o vento e sobre a grama,

abre-se a lua, florescem as estrelas,

a torre da Noite luz derrama".

Frodo havia recostado na cama, descansando a cabeça confortavelmente no travesseiro para melhor observar o tutor. O menino ouvia a melodia com uma espécie de admiração que Bilbo reconheceu em seu rosto. Os traços de tristeza desapareceram, sendo substituídos por uma sonolência crescente.

"Em júbilo cantemos todos juntos!

A relva é macia, os pés têm asas,

o rio é de prata, vão-se as sombras;

é belo o mês de maio em nossa casa".

Bilbo ansiava levar o menino para algumas aventuras também. Uma longa caminhada nos arredores de Hobbiton, talvez pudessem ir até Bree, onde moravam os homens. Imaginou Frodo finalmente se tornando um rapaz distinto, com idade suficiente para uma viagem à Valfenda. Sam o acompanharia, disso Bilbo tinha certeza. Ele sorriu com o pensamento divinatório e seguiu cantarolando.

"Cantemos baixinho, tecendo-lhe os sonhos!

Sem nunca deixá-lo, embalemos seu sono!

O errante repousa! Seja leve o travesseiro!

Dorme e sonha tranquilo! Amieiro e Salgueiro!"

O hobbit mais velho percebeu que Frodo havia fechado os olhos. De vez em quando, ele se esforçava para abri-los como se não quisesse que o sono o levasse até a cantiga terminar.

"Calado, Cipreste, até o dia romper!

Desce, Lua, do céu! Escura seja a terra!

Silêncio, Carvalho, Freixo e Espinheiro!"

Por fim, o pequenino adormeceu antes que a última linha da canção de ninar terminasse. Bilbo finalizou, seu timbre ainda melífluo e afetuoso enquanto observava a expressão pacífica de seu protegido.

"Águas, calai, até a luz abrir na serra!"

Bolseiro diminuiu ainda mais a luz da lâmpada até que apenas uma mínima chama iluminasse o recinto. Silencioso como um ladrão sutil, ele se dirigiu para a porta. Deu uma espiadela derradeira em Frodo dormindo e desejou que seu sono fosse embalado por doces sonhos ​​até que a manhã o cumprimentasse.

— Durma bem, meu filho querido.

BAGGINS ──  "Lord of the Rings"Onde histórias criam vida. Descubra agora