“A televisão me deixou burro muito burro demais... Ô Cride fala prà mãe...”
Quem de nós brasileiros com mais de 30 anos não conhece e adora essa música? Pois é, eu também a adoro, principalmente a versão ao vivo com Rita Lee. Entretanto por mais geniais que sejam Rita e Titãs, não posso concordar com a firmação de que a televisão nos deixa burros. Durante muito tempo aceitamos essa mentira como se fosse uma verdade indisputável, mais uma daquelas mentiras que contamos para nós mesmos até que após repetida mil vezes se torne verdade.
Afinal de contas quem nunca ouviu dizer que o brasileiro é um povo amável? Que no Brasil não existe racismo e todas as raças e credos vivem em harmonia? Hoje sabemos o quanto isso não condiz com nossa sociedade. Mas àquela altura, as verdades de mentira iam se impondo de geração em geração, pois do mundo conhecia-se muito pouco. Nosso mundo chegava na esquina de casa, e naquele micro cosmos acreditávamos no que quiséssemos sem ter que nos deparar com a outra face da moeda. Sem ter que constatar que no fundo nossas verdades eram mentiras cimentadas na sociedade desde sempre.
Mas a ditadura acabou, veio a geração dos artistas da década de 80 com suas interrogações e seu protesto dando um choque de liberdade em nossas cabeças até então acomodadas com a mentira confortável. Depois entramos na era da informação 24 horas com o surgimento dos canais de notícias e por fim com a criação, popularização e expansão da internet o mundo deixou de ser algo desconhecido. Hoje sabemos o prefixo do avião que cai no Golfo de Bengala, e o que é mais impressionante, sabemos onde é o Golfo de Bengala, podemos ver vídeos, fotos, imagens via satélite. Ninguém mais pode nos falar que o Golfo de Bengala é uma região da Papua Nova Guiné, pois não é.
Do mesmo modo que sabemos onde fica o Golfo de Bengala, sabemos também que muitas das afirmações não há muito intocáveis, se mostraram exatamete o oposto do que sustentavam. O povo brasileiro se mostrou não tão amoroso assim, e o racismo saiu dos livros de história para o meio da rua, das redes sociais, das declarações de personalidades conhecidas de todas as esferas da nossa sociedade. Ora cantores, ora atores, ora políticos e outros nomes públicos mostraram o quanto nossa gente é preconceituosa. E embora muita gente tenha se negado a aceitar a dura realidade, acredito que hoje em dia não há mais quem negue nossa veia racista.
Mas o que tudo isso tem a ver com os versos do Titãs supracitados? Acredito que a esse ponto o leitor já saiba o que vou dizer, e como irei argumentar minha opinião. Embora já estejamos há algum tempo na era da informação, algumas mentiras ainda perduram, talvez por falta de reflexão, talvez por aceitação passiva de algo que por muito tempo foi transferido de geração em geração. Virou quase um bordão dizer que a TV emburrece a sociedade, ou que ela seja responsável pela ignorância do povo brasileiro. Como chegamos a essa afirmação? Quando foi que a TV se tornou o vilão responsável por nossa total falta de conhecimento e interesse por algo um pouco mais complexo que bunda, bola, briga e baixaria?
A TV produz programas de baixo nível porque o povo assiste, ou o povo assiste porque a TV produz? Há alguns anos diziam que a classe C não tinha TV a Cabo e por isso os programas de baixo nível faziam sucesso, pois eram preferidos das classes menos abastadas por elas não terem alternativas. No entanto a internet se popularizou, hoje chega a uma considerável fatia da sociedade, portanto não há mais apartheid do entretenimento. Hoje todos podem assistir o que quiserem na hora que quiserem criando assim a sua própria TV, livre das imposições dos canais convencionais, dos seus horários e da sua programação.
De fato isso aconteceu, hoje em dia temos uma miríade de novos comunicadores nos portais de vídeo, onde pessoas comuns falam aos seus pares sobre os mais diversos temas; sexo, religião, política, comportamento social, esportes... Porém os portais de vídeos não tem apenas novos comunicadores, os portais se transformaram em verdadeiras videotecas, disponibilizando um sem número de vídeos para todos os gostos. São propagandas antigas que nos trazem lembranças da nossa infância, são quadros ou episódios inteiros de antigos programas humorísticos, programas musicais, shows, talk-shows, entrevistas dos mais variados gêneros, documentários e como não poderia deixar de ser os vilões da TV convencional. Bunda, bola, briga e baixaria.
Músicas com letras pornográficas, brigas de mulheres e homens nas portas das escolas, estádios, festas populares, transeuntes se acidentando ou até mesmo perdendo a vida, pessoas em situações constrangedoras estão disparados nos “hits” das plataformas de vídeos. E agora? Quem é o vilão? Quem é que obriga o internauta a procurar na web exatamente o que critica nas TVs? Existem vídeos de conteúdo de gosto discutível com milhões e dezenas de milhões de “views” enquanto documentários interessantíssimos não chegam a centena de milhar.
Recentemente descobri uma menina brasileira que toca violoncelo e canta. Não que ela seja a maior revelação cultural do Brasil, mas é sem dúvida merecedora de bem mais que os seus menos de dois mil views. Enquanto isso um popular que recentemente faleceu ao ser atropelado, tinha (tem) mais de 13 milhões de views cantando uma música sem graça, sem voz, sem melodia, sem absolutamente nenhum atrativo. Inclusive ao chegar aos dez milhões de views esse senhor foi convidado a um programa de auditório de uma grande emissora.
Embora ele seja apenas um exemplo, temos muitos outros de pessoas comuns que se tornaram celebridades graças a internet e aos internautas. Fica evidente que não foi a TV que fez esse falecido nobre desconhecido ficar famoso, foram os internautas que o levaram a TV, mostrando o caminho contrário à logica sustentada pelos versos no início desse texto. A TV não gera mais conteúdo para o povo. O povo gera conteúdo para as TVs. Ergo, como já defendo há algum tempo, embora ainda encontrando uma certa rejeição... Por mais inverossímil que pareça, hoje em dia não é mais a TV que emburrece a sociedade, é a sociedade que hoje emburrece a TV, pois se o povo gostasse de conteúdo inteligente, a TV Cultura seria líder de audiência.
Ullisses Salles
Enviado por Ullisses Salles em 01/04/2013
Código do texto: T4217669
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