V. Dilacerada

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As lágrimas pesadas de Bill continuavam a correr, sobre minha pele e sobre os lençóis. Ele drenava o fôlego e se perdia em lamúrias que ninguém em vida compreenderia. Era um perdido em sentimentos corrosivos que o consumiam numa tormenta de solidão.

Juro que, participando de sua dor, tive pena do meu assassino. Parecia inofensivo e desesperado com soluços de quem precisa de ajuda. Uma ajuda que jamais poderia dar. Eu nunca mais me reergueria, por sua culpa. E ele chorou até adormecer em meu seio.

(...)

O Sol nasceu agraciando os cenários do vilarejo, iluminando a relva e campinas. Ouvia distantes o canto das aves que mergulhavam nas nuvens brancas, acompanhado do ruído suave dos riachos .

O agente funerário despertou com olheiras profundas. Abatido, tornou a me trajar com o vestido branco, e me carregou pelos corredores compridos de sua casa de paredes de pedras lapidadas e telhados triangulares.

Alcançou a funerária e abriu a câmara fria, que se tratava de um cômodo pequeno de temperatura baixa feito um frigorífico, que preservava alguns corpos. Colocou-me numa das gavetas, bem escondida e fechada com trinco. Se retirou para trabalhar e prosseguir com a vida, manter as aparências para os moradores e conhecidos.

De ossos congelados, músculos retesados e pele estirada, permaneci no cubículo, longe do calor da alvorada, longe da proteção do abraço de George, e longe do riso doce de meu filho. Confinada em estado moribundo, lembrava de como eu era quando viva. Nunca tive medo da morte, essa dúvida que afana a existência. Diziam os pessimistas que a morte é a cessação de todos os sonhos, de todas as esperanças. Então o que acontecia comigo? Por que ainda me restavam tantas sensações? Que maldição era essa em que fui colocada?

O Sol se foi, e veio a noite. O expediente de Bill terminou. E ele não me retirou. Talvez o susto de me ver acordar tenha o despertado também, para a terrível realidade que cometia.

Com a constatação do absurdo, me abandonou por dias. E embora estivesse quieta e em silêncio, era como se houvesse uma mão cobrindo minha boca e roubando minha respiração. Eu almejava a liberdade, almejava seguir o rumo para o descanso eterno, encontrar a paz que todos os espíritos vagantes desejam.

Impossível. Dentro da câmara fria e vítima da loucura de um homem, continuava em meu cárcere, tomada por trevas.

Então, certa madrugada, muito tempo após, a luz se acendeu. Era Bill, que me retirou de minha quietude.

Seu semblante era deplorável, adoecido. As bochechas tornaram-se mais magras e os olhos mais fundos. Ele iria me enterrar? Naquela hora, ansiava pela chance de voltar para a tumba e por fim encontrar trégua.

 Ele iria me enterrar? Naquela hora, ansiava pela chance de voltar para a tumba e por fim encontrar trégua

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Porém, ele me levou em seus braços para o leito no quarto. Repetiu o ritual da outra vez, me despiu, e permitiu que a calidez da lareira amolecesse o que restava de minha matéria desfalecida.

- Senti sua falta, Eugenie... Tirei sua vida, para te fazer minha. E fui assombrado pela concepção do quão delirante eu estava... Ou talvez estivesse com medo. Só isso, medo de você acordar de novo e definitivamente, para se vingar, se voltar contra mim, me odiar, ou me abandonar... - explicou, segurando minha mão. - Mas... Acho que já passou o susto.

Declarou e me encheu de beijos. Possuiu-me com uma ânsia maior, em seu ato profano, sobrecarregado de loucura e paixão, seus olhos brilhavam em prazer.

Entre minhas pernas, a cada brusco encontro do quadril de Bill contra o meu, eu recebia o tranco de suas investidas ágeis. Os gemidos roucos e baixos ecoavam pelo dormitório, e o seu calor retirava qualquer vestígio de minha frieza. Distribuía carícias por meus seios e derramava em mim seus toques febris. Toques esses que pareciam reabastecer minha dependência por vitalidade.

Após se fartar e acabar com as doentias saudades, deitou em meu busto buscando abrigo, pondo o rosto entre meu ombro e pescoço, para passar o nariz pela orelha e ali conceder sussurros com seus lábios. E quanto mais ele me amava, mais eu sugava desse amor para alimentar a necessidade de reagir, de fugir, de despertar.

- Minha Eugenie... - falava sem fôlego, respirando o cheiro de meus cabelos. - Você se tornou a família que eu nunca tive. Se eu pudesse seguraria firme em sua alma e a abraçaria pra se unir à minha.

Feito seus depoimentos de apreço, me conduzindo nesse relacionamento impossível, ele adormeceu.

As horas passaram. O suor esfriava no seu dorso à medida que descansava.

Naquela noite, eu despertei. O oxigênio veio para meu pulmão como no nosso primeiro contato. Me coloquei sentada, nua e desamparada. Acordei, de fato, do lodo? Fitei meu assassino, que dormia profundamente, e me perguntei se era um sonho? Presa, dessa vez, num pesadelo de Bill Günther? Olhei ao redor, e o ambiente se formava etéreo.

Me ergui para caminhar pela casa. Precisava fugir. Encontrar meu filho... Quase ouvia seu choro, chamando por mim.

"Não se preocupe, bebê. Mamãe estará em casa, logo."

Lenta e vagamente, arrastei-me pelo escuro. Segurava nas paredes, e tentava erguer meus olhos de pálpebras pesadas para os caminhos que se materializavam relampejando. No caminho, me coloquei na presença de meu reflexo em um pequeno espelho que se estendia numa mobília na sala de estar.

Quis gritar, espantada com a assombração que me encarava de volta. Mas, de minha garganta encarniçada, nenhum som se sobressaiu, por maior que fosse meu horror. Minha nudez, que já foi de formas níveas, naquele momento estava em carne exposta, num dos estágios da decomposição.

Mesmo após tempos na gaveta, o vigor da vida já se esvaia, e a minha estrutura física não suportava as reações de pós-morte.

Me aproximei com os olhos arregalados na imagem refletida. Nas órbitas afundadas, os tons de branco anêmico se misturavam embaçados nas íris que um dia foram azuis reluzentes.

Eu percebi que não existiriam palavras pra explicar ou exprimir a ilusão que Bill sofria. Em sua inocência desconexa, ele me via como uma musa eterna. Mas estava enganado. Afinal, eu deteriorava em meu tormento, e no odor pútrido da carne, as larvas e vermes faziam de minhas entranhas sua casa. E somente o agente funerário não enxergava o quanto eu estava dilacerada.

Eu chorava tocando meu rosto, o osso do maxilar surgindo sob rastros de sangue seco e coagulado. Os cabelos longos e quebradiços se esticavam e se emaranhavam como teias de fios pretos pelos meus ombros magros e costas.

Desgastada e desbotada, fui assolada pelo senso que se decaía em mim. Eu jamais poderia voltar pra casa... Jamais poderia abraçar meu filho, nem meu marido...

Desistia. À mim só restava o sepulcro, voltar para minha tumba e ali permanecer.

A Morte de Eugenie || Bill Skarsgård ✓Onde histórias criam vida. Descubra agora