VII. Final

185 21 4
                                    

O dia que se sucedeu foi como os anteriores. Ele me recolocou na câmara fria da funerária, entre outros corpos, na gaveta trancada. As horas seguiam, o tempo passava. Encarcerada à temperaturas baixas, fui mantida escondida.

Neste dia, Bill Günther recebeu uma visita. Eu não tive como ouvir o diálogo, mas o som de vozes se rastejava pelo silêncio dominador.

Óbvio que era raro ter visitas. As pessoas da cidade o evitavam, ele era mal visto, e não havia alguém que desejasse ter sua amizade. Contudo, algo naquela presença importunou o coração acostumado com isolamento. Esse desagradável infortúnio foi sentido em meu espírito, como se os desagrados dele estivessem interligados com os meus.

Por sorte, ou não, a pessoa misteriosa apenas queria conversar. Assim que partiu, Bill veio até mim, com pavor.

- Eugenie... - disse trêmulo, puxando a gaveta que me acomodava na geladeira funérea. - Aconteceu uma tragédia, Eugenie! O investigador da cidade... ele veio até mim... Ele está procurando por provas, ele quer descobrir quem te matou... eu sou um suspeito, e... - sua fala foi interrompida. As pálpebras arroxeadas por olheiras arregalaram expondo as órbitas dos olhos cheias de horror. - O que.... O que é você...? - perguntou quase sem ar, recuando alguns passos. Por fim, ele conseguiu me enxergar como eu verdadeiramente era.

A dor da lucidez!! Que momento fatal e lamentável é esse em que o baque da realidade nos coloca consciente frente às loucuras cometidas.

Feito um louco que comete crime passional e logo encara as mãos sujas de sangue. Ali estava Bill, pasmo em constatar minha destruição sobre a gaveta de alumínio.

A presença do investigador, que não passava de uma simples visita, o trouxe à razão. Como uma luz que se acende, Bill viu. Ele viu o cadáver que dizia amar, já desbotada pela podridão.

Eu não era mais aquela estátua alva de outrora, de faces macias e colo de neve como ele idealizava. Eu era um corpo apodrecido, de miserável destino.

Bill testemunhou a verdade. Apavorado, como quem vê uma assombração, me largou sozinha e correu pra fora da câmara, trancando com a chave.

Não havia mais o que ser feito... Nem o que ser explicado. Ele merecia piedade? Lágrimas? Não mais. Que dormisse com as lembranças negras.

Mas naquela noite, ele retornou. Se possível, pior que antes. A doença o corrompia, emagrecia e enfermava. Bêbado, não encontrava conforto nessa vida desprezível.

Sem dizer uma palavra, me pegou no colo, cambaleante e cheirando à vinho. Tinha uma garrafa em mãos, onde embargava suas neuras imorais. A cólera de um assassino. O que ele faria? Levaria ao quarto? Não... A confirmação de que eu não era a musa que ele imaginava fora dolorosa como um balde de água gelada. Um choque de adrenalina no cérebro adormecido. Ele não me desejava mais. Não me queria mais.

- Confesse seus medos, Eugenie. - ele balbuciou ébrio, ácido. - E eu te confesso os meus...

Atravessou a funerária me levando, chegou às portas do fundo e me conduziu para o cemitério.

Aquele maldito cemitério... Mais uma madrugada de névoa e cores foscas. A claridade da Lua era fraca para a vastidão do cenário. Günther tropeçou entre as pedras de lápides e sepulturas. Não sei como, naquelas condições precárias, ele encontrou minha tumba. O lugar onde eu deveria estar enterrada. O leito onde eu deveria descansar.

Me jogou na terra macia e quase despencou junto.

- Aqui estão meus destroços. - fez ele, com um timbre de raiva entonando à voz carregada. Levantou a garrafa, enquanto me observava com olhar de desgosto e tristeza. Pupilas dilatadas de bêbado desiludido. - O inverno de sua alma me congelou pra sempre.

Dito isso, virou o que restava da bebida em grandes goles. Largou a garrafa, fazendo o vidro estilhaçar em uma lápide qualquer. Limpou os lábios com o braço, e apanhou a pá que estava caída à um canto. Começou a cavar o meu sepulcro.

Em meu esmorecimento, pela ansiedade mesclada à desistência, eu esperei. Aguardei com expectativa de voltar ao tão almejado repouso.

O ferro da pá tocou o caixão vazio. Na calada do cemitério, ele puxou a urna escura e a abriu. Manteve a porta escancarada. Puxou-me com cuidado e me colocou dentro. Lágrimas brotaram nos olhos vermelhos que não suportou a separação. Ele me entregava ao inevitável caminho. Por medo, talvez, de ser perseguido e descoberto pelo investigador. Por desespero, também, por despertar do pesadelo.

Não existiam meios de me conservar, nem de me amar. Eu me desfazia entre parasitas, e a punição da veracidade convertia os neurônios antes obscurecidos pelo delírio.

- Não queria... - chorou com soluços. - Eu não queria te enterrar. Mas preciso... Eu estava louco... Meu trabalho está acabado e eu não deixo nada. E se eu não posso te juntar à mim em vida. Então me junto à você... em morte.

Preso ao cinto ele tinha um punhal. Puxou e o exibiu frente à minha face pútrida.

- Veja... - sussurrou. - Eu te matei com essa faca. E é com essa faca que eu vou me matar. - anunciou, pondo a lâmina no pescoço. Fechou os olhos, expressivamente angustiado, e fraquejou. O punhal escorregou das mãos. Ele não tinha forças, nem coragem. - Não consigo... - lamuriou, renunciando ao medo. - Não consigo.

- Eu te ajudo. - eu disse.

Bill parou de chorar e me encarou. Nossos olhares se encontraram, e ele sorriu para o cadáver ao caixão. Eu me sentei com lentidão, e toquei a face do agente embriagado.

Cobertos por ondas de êxtase e loucura, seja alucinação ou não, eu quis ajudá-lo, e assim o fiz. Apanhei o punhal pelo cabo e apreciei a chance. Descansar, mas levar comigo o causador de minha desgraça.

- Não chore... Não se assuste. - consolei, colocando a faca unida à sua garganta de pele bonita e lisa, repousada próxima do elevado pomo-de-adão. - Não chore mais.

- Você fica comigo? - ele indagou, sem piscar, submergindo sem receios numa confiança impossível.

Eu assenti, me apegando à possibilidade de encontrar trégua na sua companhia. Concordamos em silêncio, sem quebrar o enlace visual, que se ele tirou-me a vida, então era a minha vez de causar-lhe a morte.

Fiz o corte. A lâmina riscou um fio profundo no pescoço, e o sangue da jugular veio à luz da Lua, prateado e intenso. Abandonados os desejos de voltar pra casa, eu me rendia ao irremediável.

Ele se sobressaltou e me atacou com um beijo. Vislumbrei febril a vida que evaporava nos seus lábios, enquanto as pálpebras se fechavam. O sangue escorria, nos banhava. E aos meus braços, Bill Günther encontrou o fim.

Naquela noite, éramos somente dois vultos cercados por sombras que tremiam ao ondear do vento.

O corpo dele tombou no meu, de volta para o caixão. Mortos. O punhal, na mão esquerda dele. Havia se suicidado ou havia se entregado? Não importava. Ao menos naquela hora, éramos dois cadáveres abraçados. Duas almas que se deparavam com a conclusão decisiva. Juntos, enfim, em paz.

"Quando dreno meu fôlego, e o brilho preenche meus olhos, beijo-a, ainda. Pois ela nunca mais se erguerá. Em meu escasso corpo, descansa a tua moribunda mão. Através dos prados Celestes onde corremos. Como um ladrão à noite, o vento sopra tão suave, isto guerreia com minhas lágrimas. Que não secarão por muitos anos. Dourada seta do amor.... Dela deveria ter fugido. E não ao ébano dardo mortal, abatê-la mortalmente."- My Dying Bride, For My Fallen Angel.

××××××××
Como devem imaginar, escrevi esse conto - que está longe de ser um romance normal - com todo amor, é mto especial! Não deixem de comentar, se chegaram até aqui, e dizer o que acharam. Obrigadaaaa

A Morte de Eugenie || Bill Skarsgård ✓Onde histórias criam vida. Descubra agora