O céu de final da tarde se transformava como um retrato de um abraço hesitante, onde o azul claro do dia é lentamente envolvido pelo roxo mais profundo, como um tecido de pele desbotado que tenta esconder um ferimento. Natália se dirigia com passos tranquilos à sorveteria próxima de sua casa, um lugar que ela e Carol costumavam dividir sorvete de pistache em dias quentes como este.
Ao chegar à sorveteria, o som suave de um sino anunciou sua entrada. O ambiente era acolhedor, com mesas de madeira e paredes decoradas com quadros coloridos e fotografias antigas. A fila do balcão era curta, e o aroma doce dos sorvetes misturava-se ao cheiro nauseantemente doce de waffle recém-preparado. Natália adentrou devagar, observando as pessoas ao redor, até que seus olhos pousaram em uma figura familiar.
Carol estava sentada em uma mesa no canto, sozinha. Usava uma camisa de linho azul clara e calças jeans, seu cabelo preso em um coque desalinhado. Diante dela, um copo de sorvete de menta com chocolate. Natália parou por um momento, observando-a. Parecia imersa em pensamentos, mexendo o sorvete devagar com a colher, sem realmente comer.
Natália respirou fundo e caminhou até a mesa. "Carol?"
Carol levantou os olhos, surpresa, e uma série de emoções passou por seu rosto – surpresa, hesitação, e então, uma leve suavidade. Aqueles olhos que ela costumava ler com tanta facilidade carregavam uma tristeza que Natália conhecia bem, uma sombra que falava de noites mal dormidas e pensamentos constantes. "Natália."
"Você não ligou ontem. Nem gritou na janela", senta-se ao lado da outra mulher no banco sem esperar convite. "Você come sorvete quando sente que está merecendo uma recompensa. Temos boas notícias para compartilhar?", continuou quando sentiu que não teria uma resposta.
Finalmente, um sorriso. Nem tudo estava perdido. "Lembra da Olívia? Aquela mocinha com AME? Ela tá andando, Natália! Andando! E...achei que isso me fazia merecedora de um sorvete de menta. Com muito chocolate."
Natália sabia que seu sorriso era tão grande quanto o de Carol. Ela tinha tanto orgulho dessa mulher. Como ela pode duvidar de sua própria competência como profissional?
"Menta com chocolate, Carol? Isso tem gosto de pasta de dente. Por que não pegou o sorvete de pistache, como sempre?"
"Natália, é você quem gosta de pistache. Eu gosto de menta. Com chocolate."
Natália abria e fechava a boca como um peixe no aquário. "Carol, durante cinco anos a gente dividiu sorvete de pistache. Por que você nunca me falou."
Carol deu de ombros, lançando um olhar furtivo para a boca de Natália. "Sei lá. Você fica feliz tomando sorvete de pistache. E misturado com o seu gosto não era tão ruim assim."
Às vezes, o amor parece amor normal: mãos dadas, apelidos carinhosos, cartões de aniversário cuidadosamente escolhidos. Às vezes, é diferente. Às vezes, se parece com dar espaço quando a outra pessoa precisa. Às vezes, é sobre um sabor de sorvete. Às vezes, é a maneira como ela implora com olhos que não desista delas, porque está tentando encontrar o caminho de volta.
Natália se inclina na frente, encaixando seus lábios nos de Carol e o mundo para por alguns segundos.
"E então?"
"Pasta de dente, Carol. Pasta de dente. Mas do chocolate e de você eu gosto."
Ela vê a atendente do caixa sorrindo quando a gargalhada de Carol atrai a atenção de todos para elas.
"Eu preciso ir. Tenho um compromisso daqui a pouco, passei só pra pegar um pote de sorvete para a sobremesa." Carol quer achar que permaneceu impassível ao ouvir essas palavras, mas seus olhos sempre foram expressivos demais para seu próprio bem.
Natália não entendeu exatamente o momento em que isso ocorreu, mas os muros de Carol já estavam erguidos novamente. "Tenho certeza que sim."
"Acho que não entendi, Carol."
"Nada, Natália. Nada."
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Ao chegar em casa, Natália deixou as chaves na mesa da cozinha e caminhou até a janela da sala para observar a movimentação do lado de fora. A luz dos postes tingia as paredes das casas de um tom amarelado, enquanto o vento suave carregado de maresia agitava as folhas das árvores na rua.
Foi quando seus olhos se prenderam à cena do apartamento de Carol. Viu Adriana se despedindo de Carol na porta, entregando-lhe um último abraço antes de seguir para o elevador. Natália prendeu a respiração por um momento, correndo para pegar sua câmera. Era um retrato íntimo, uma cena que Natália achava difícil de resistir.
Ao focar a câmera na cena, Natália acompanhou a despedida. Continuou seguindo Carol com a lente enquanto ela dançava pela sala. A mulher mexia os quadris com leveza, movendo-se em sintonia com a música que soava provavelmente do celular conectado a caixas de som. Natália observou os gestos suaves de Carol, as mãos brincando com os talheres enquanto levava as louças sujas para a cozinha. Ela se perdeu por um instante na imagem, apreciando a leveza do movimento de Carol, algo que já não via há muito tempo.
Os cabelos de Carol, presos num coque desalinhado, balançavam enquanto ela se movimentava. Suas roupas eram simples e confortáveis, um moletom cinza e um shorts de academia. Natália podia ver os contornos suaves de sua figura e a boca mexendo enquanto ela passava de um cômodo para outro do apartamento.
Os movimentos de Carol eram como uma poesia silenciosa, fluida e graciosa. Ela movia-se pela cozinha como se estivesse em um espaço particular e seguro, entregando-se à intimidade do momento. Natália observava, quase esquecendo o propósito inicial de capturar aquela cena com sua câmera, presa por um instante à beleza simples dos meneios de Carol.
Eventualmente, Carol terminou de arrumar as louças e voltou para a sala, ainda cantando. Ela parecia ter encontrado algum tipo de conforto naquele momento, mesmo que estivesse sozinha. Vê-la ali, cuidando dos pequenos detalhes de sua rotina, reforçava em Natália a dor da ausência e a vontade de não desistir. Ela desejava poder compartilhar aqueles momentos novamente, participar ativamente da vida da outra mulher.
Após alguns cliques e registros, Natália foi flagrada. Ela abre a janela.
"Tá escutando o que?"
"Achei que ficar gritando na janela incomodava os vizinhos."
Revirando os olhos Natália aponta para o próprio celular antes de fazer a ligação.
"Pedrinho ficou perguntando de você hoje a noite. Acha que podemos levar ele no parquinho, juntas, esse final de semana? Ele sente sua falta."
Ah. O compromisso era na casa de Pedro e Taís.
"Claro. Estou com saudades dele também."
"Em duas semanas, a turma dele vai fazer uma apresentação de teatro. Aparentemente, a presença da tia Carol é obrigatória."
O sorriso de Carol, mais luminoso que qualquer poste da rua, aqueceu o coração de Natália.
Click
Era difícil não se deixar levar pela esperança de que aquele sorriso seria todo seu novamente, ao mesmo que tempo que tentava não se deixar afundar na complexidade das emoções ali envolvidas. Observar Carol do outro lado da rua lhe causava um emaranhado de sentimentos contrastantes, onde o desejo de reconstruir o que havia sido perdido lutava contra o medo.
"Você realmente precisa parar com isso, Natália. Não tem nada mais interessante pra ficar tirando fotos?"
"Não." Natália não achava que tinha por que mentir. "Quer desligar?"
"NÃO." Carol limpa a garganta. "Não. Me conta como foi o jantar enquanto me arrumo pra dormir?"
A noite estava repleta de contrastes, onde a dor e a esperança se entrelaçavam como fios invisíveis, tecendo uma complexa teia de emoções que Natália não conseguia desvendar totalmente. Ela não sabia como agir, mas queria que Carol soubesse que ela estava ali.

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Entre nós, uma rua
FanfictionO amor pode ser uma verdade inconveniente, mas é a coisa mais honesta que Carol já encontrou. E nada que vale a pena ter é fácil.