Capítulo 1. Sequoia

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     Não saberia afirmar com certeza quando tudo começou. Se em uma manhã aleatória da vida o repúdio pelo contato físico simplesmente passou a ser real e fazer sentido, ou gradativamente fora cultivado dentro do meu cérebro, crescendo raízes entre as rugas e fixando-se sólido e imbatível como uma Sequoia. Nem mesmo as razões são claras, embora gostaria que fossem. Germes? Uma infinidade deles existem e grande parte são prejudiciais à saúde, mas, não. Não é isso. A textura, o cheiro, o indevido embrulho no estômago segundos antes da pele com pele, a afinidade hedionda e profunda, feito invasão, coceira, arrepio e incômodo, além das destoantes firmezas individuais de cada ser humano no ato. É impossível de acostumar, pois é singular, único. Definitivamente não consigo entrar em termos com eventos que fogem de um regrado padrão. O problema sou eu, estou ciente desse fato e não me perturba mais ser “diferente”, ou pelo menos tentava me convencer disso. 

     As férias escolares são um bálsamo para esse empecilho, porque não precisar ir para o colégio risca da lista os locais mais perigosos da rotina: transportes públicos, pátios lotados, salas de aula e educação física —essa última que felizmente consegui um laudo isentante. E pretendia aproveitar cada dia, hora, minuto e segundo na segurança de casa, lendo sobre botânica, jogando plantas vs zombie, cuidando do jardim ou desenhando no sketchbook que comecei na última semana de aula. Todavia as três batidas na porta do quarto foram as divisoras de água entre a paz e o caos. Engavetei o diário na escrivã o mais rápido possível e cruzei os dedos na superfície da mesa, encarando a maçaneta e contando milésimos —se é que é humanamente possível—, ela girou, o trinco encolheu para dentro e então uma fresta se abre; era a minha mãe. A atitude é contraditória, bate por educação e viola o conceito abrindo sem que eu responda, mas tudo bem, porque estou acostumado. 

     —Já está pronto, Caio? —Indagou, um tom sutilmente apressado. 

     E quando me dou conta de que não faço ideia do que está falando, olhei em volta buscando qualquer detalhe que pudesse me fazer lembrar de algo que provavelmente é importante, mas não encontro e sou obrigado a enfrentar as consequências de viver no mundo da lua.

     —Pra que, mãe?... —Murmurei sabendo estar encrencado.

     —Pra viagem! Vamos! Seu tio está esperando, anda, faz uma malinha e desentoca desse quarto menino. —Bateu as mãos nas coxas, uma mania incorrigível e que fielmente denuncia todas as vezes que se sente frustrada.

     Saiu reclamando pela casa, prestando queixas da minha falta de atenção e como “nunca escuto nada do que diz”. Eu juro que escuto, e provavelmente devo ter, mas não tenho a memória tão boa quanto a dela, que com certeza me avisou há meses atrás que iríamos viajar nesse fatídico dia e nunca mais mencionou a respeito. Levantei indo arrumar minhas tralhas. Adeus planos pacíficos de férias. 

[...]

     O meu tio Fábio tem um resort beira a mar em Milena, uma cidadezinha litorânea com um visual meio vintage, casas pintadas de branco, janelas coloridas e todas as ruas são feitas de pedra banhadas a areia carregada da praia. Nunca fui um entusiasta quando o assunto são viagens tropicais, detesto passar protetor solar, o sal resseca a pele e não sei nadar. 

     Durante todo o trajeto escutei minha mãe enfatizando o quão divertido seria e os mais variados pontos turísticos que poderíamos visitar, enquanto sua voz mistura-se a uma música do The cure, “Friday I'm In Love”. E permaneci em silêncio manejando a cabeça positivamente, esboçando pequenos sorrisos quando a excitação em seu timbre parecia explodir. A verdade é que não gosto de desapontá-la, então mesmo não se tratando de ocasiões que despertam genuinamente o meu interesse, dou corda, faço perguntas genéricas do tipo “sério?”, “o que têm lá?”, “não é perigoso?”. E dessa forma matamos o tédio da estrada. 

     Entramos por uma trilha de terra e o aroma da maresia invade minhas narinas, embora o calvário arborizado só nos permitisse ver alguns vestígios do mar. E troquei a atenção da janela para o parabrisa, vendo o enorme casarão do tio Fábio. A caminhonete perde velocidade e percebo o homem esperando na porteira de madeira que dá acesso ao quintal, ele abre acenando em completa euforia, uma feição vívida de animação. No instante em que desembarcamos nos alcançou abraçando minha mãe com risadas de alívio, matando a saudade eu diria. Ambos são assustadoramente parecidos, exceto pelo fato de que ela não tem barba e tem muito mais cabelo, mas, fora isso e o bronzeado, possuem o mesmo tom de loiro, lábios finos, olhos castanhos arredondados, e bochechas salientes. 

     E o show de horrores começa agora; ele vem em minha direção pronto para envolver seus braços grossos ao redor do meu corpo, bagunçar meus cabelos e expressar afeto com um exagerado contato físico desnecessário. O primeiro reflexo é afastar encolhendo tal qual um cachorro prestes a levar uma chinelada no focinho, a porta do carro bate com o peso do meu corpo contra ela e recebo em resposta um olhar de confusão que diz perfeitamente “qual é o seu problema, garoto?”

     —Ele tem toc. —Minha mãe faz o favor de “esclarecer”. 

     E não é verdade, eu não tenho toc, ou pelo menos não propriamente diagnosticado ainda. No entanto facilita a compreensão daqueles que não estão diariamente no nosso meio de convivência. 

     —Entendi… Sem problemas.. Vamos entrar, vamos! —Gesticulou com o braço igual um garçom de restaurante chique faria. 

     Demos a volta no perímetro e finalmente na parte dianteira da estrutura a vastidão da praia sana a nossa curiosidade. É comum, muita água, muita areia, o mar azul cintilante, gaivotas grasnando aos ventos, as ondas quebrando na margem, e a espuma branca do sal indo e voltando. Perdi a noção de quantos minutos fiquei observando, ainda que julgasse simplório e não muito interessante, me cativou o suficiente para que fosse despertado no susto com a minha mãe aos berros. 

     —Vem pegar a sua mala, Caio! —Repetiu.

     Então me afastei da cerca e dei meia volta indo buscar meus pertences na caminhonete. 

[...]

     Na hora do almoço descobri que não seriam apenas nós três no resort, o aluguel de estadia está fechado para viajantes, contudo Fábio iria receber no dia posterior mais meia dúzia de familiares e alguns amigos próximos. Devo confessar que a notícia não é de comemoração do meu lado, mas mantive reclamações para mim mesmo, sendo visita devia no mínimo evitar ser desagradável ou mal educado. 

     A antecipação me permitiu escolher um dos muitos quartos, qualquer um que agradasse, e optei —calculando com base na possibilidade de precisar dividir, uma vez que a casa estivesse cheia— um com uma única beliche. Larguei a mala na cama de cima e debrucei no parapeito da janela, sentindo a brisa fresca no rosto. A natureza do litoral é interessante de se observar, a vegetação restinga tem minuciosidades admiráveis, principalmente dado ao fator: resistência. Próximos das dunas a formação das herbáceas, ramos rasteiros no chão, grama baixa, arbustos afiados e nas pedras camadas de líquens que, na verdade são uma associação simbiótica composta de organismos, entre fungos e algas, não plantas.

     Poderia passar incontáveis horas assistindo a paisagem por causa das plantas, e pretendia gastar mais tempo pendurado na moldura da janela se não fosse por uma distração: um garoto de cabelos desbotados perambulando na margem. A água na altura dos joelhos, cabeça baixa e passos desengonçados. Será que perdeu alguma coisa? Apertei os olhos para enxergar melhor suas características a distância, mas algo chamou sua atenção pois ergueu o queixo olhando para um ponto específico na costa e saiu correndo. Procurei abrir o outro lado da veneziana de madeira, soltando um pino de ferro enferrujado, e quando finalmente consegui estiquei o pescoço para fora tentando enxergar para onde estava indo, mas quando olhei na faixa da praia, já havia sumido...

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