Aos quatro anos de idade, meu melhor amigo era o esqueleto do laboratório de ciências.
Conheci-o num dia estranho. Um colega de classe, o mais levado, arrancou de minhas mãos o carrinho de brinquedo e, num pique quase olímpico, saiu correndo através da porta da nossa sala a caminho de Deus sabe onde. A professora, por algum motivo desconhecido, não estava lá; devia estar na direção, preparando feitiços e poções, destinadas aos meninos que não se comportassem. Inclusive, o menino que me roubou devia ser um vampiro ou coisa assim, pois mesmo depois de levado a direção, não se transformou em porco nem inseto (dois únicos destinos possíveis para as crianças levadas à presença da diretora).
Naquele dia, como eu não tivesse forças para ir atrás do larápio, nem fosse proativo o bastante para lhe prestar queixa na coordenação, vaguei sorrateiramente pelo pátio e, por algum motivo indefinido, entrei no laboratório de ciências. Lá entrando, tudo era quieto. O lugar estava plenamente vazio. Mas tive pouco tempo para apreciar os vidros espiralados e as maquetes de bocas humanas mil vezes ampliadas, quando reparei em algo terrível! Não o percebi logo por simples falta de atenção. Ouvia-se um lamento baixinho, vindo de um canto escuro do laboratório. Cheguei perto e me assustei. Era um esqueleto gigantesco, com o triplo da minha altura, cobrindo o rosto com as mãos e chorando.
- Ei, Seu Caveira, o que você tem? – Perguntei, querendo ajudar. Mas ele não respondia. Devia estar mesmo desolado. Na quinta cutucada, finalmente falou:
- Minha criança, eu choro porque estou triste.
- E por que o senhor tá triste?
- É que estou aqui há mais de mil anos, e nunca me deram um nome!
Coisa absurda, essa! Eu tinha já meus longos quatro anos de experiência e sabia bem: tudo no mundo tem nome. Meu cachorro tinha nome, meu peixe também; até minha cama e minha coberta tinham nomes; por que, afinal, um esqueleto tão bonzinho não haveria de ter? O nomeei Gaspar. Capitão Gaspar. E assim, sempre que eu estivesse abatido ou fosse contrariado, largava imediatamente minhas tarefas e dava um jeito de chegar ao laboratório. Lá eu juntava-me ao companheiro Gaspar e íamos derrotar mil e duzentos piratas, matar um dragão na lua ou desafiar um monstro marinho num jogo de amarelinha. Como as portas do laboratório se encontrassem sempre abertas para mim, suponho que a professora soubesse de minhas aventuras e mesmo as apoiasse. Mas tenho ressalvas quanto a este apoio. Veja: numa de nossas últimas aventuras, eu e Gaspar havíamos terminado um plano de dominação mundial e íamos pondo-o em prática, quando a professora entrou no laboratório e mandou-me voltar a sala. Vocês têm sorte, pois se não fosse por ela, hoje todo esse mundo seria meu.
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A molecada
Short StoryDe um esqueleto pirata ao primeiro amor. Desbrave o caminho entre a infância e a fase adulta!